Leio nalgum sítio que o alcaide de São Paulo ordenou a remoção de pessoas que moram em veículos – famílias sem teto que se abrigam nos próprios carros e/ou em carros lá estacionados há anos.

A ausência de moradia digna, além de não ser nova no terceiro mundo, no Brás foi resignificada há algumas décadas, na medida em que é tradição da rua Domingos Paiva (paralela à estação Brás do metrô), as pessoas viverem em carros estacionados.

A Domingos Paiva, para quem não a conhece, não tem árvores (quase nenhuma) e é bem larga e dotada de minúsculo passeio público...

Além disso, está no coração do Brás, reduto tradicional de italianos, cuja presença remonta a própria fundação do bairro – que se dá a partir da construção da igreja do Senhor Bom Jesus do Matosinho, lá pelo século XVIII, em um sítio então pertencente à José Braz.

No entorno da Capela formou-se um povoado e o resto é história em estado bruto e sem notícias falsas (que estou de saco cheio de estrangeirismo apedeuta). Hoje o Brás se caracteriza pelo forte comércio de roupas.

E deu, que já falamos do Brás o que seria de se falar – afinal, Adoniram já encerrou esse tema com a bronca que deu em ‘Arnesto’, aquele que o ‘convidou para um samba’ e não estava para recebê-lo...

Noves fora o Brás, o que move essa pena é a ação do prefeito paulistano consistente em remover os moradores de carros, em evidente processo de higienização...

Engraçado isso: a rua onde os carros estão estacionados (Domingos Paiva) não tem quase nenhuma árvore, mas foram as pessoas que moram nos veículos estacionados a incomodar a administração paulistana...

Não parece um contrassenso? A falta de árvore não incomoda a ponto de justificar uma qualquer medida mitigatória do Alcaide, mas gente morando dentro de veículos incomoda, em ordem tal que está em pleno andamento a retirada das famílias em situação de menos...

Para onde irão os moradores de carro? Para o mesmo lugar onde não estão as árvores?

Administrar é complexo e, por isso mesmo, os atos da administração não podem resultar em um qualquer conceito que não eleja, em primeiro plano, as pessoas – mente quem diz que o mercado é mais importante do que gente...

Antes de se ocupar de um qualquer processo ‘higienista’, São Paulo em geral e seu Alcaide em particular, deveriam observar mais atentamente a atividade recentíssima do Padre Júlio Lancelotti, forte em derrubar os ‘ofendículos’ que a administração colou (cimento cola) sob os muitos viadutos da pauliceia – bom trabalho Padre, a propósito...

De toda sorte e não fosse, só por si, absurda a ideia de uma família vivendo dentro de um carro, é mais absurda ainda a solução do alcaide: Retirem as pessoas do local onde estão abrigadas (ainda que sem a necessária dignidade) sem lhes dar um destino melhor...

A marca higienista reside, justamente, no contorno da medida administrativa revelada, cujo desenho esboça e foca a retirada dos moradores de carros e não a qualidade ou até mesmo a existência de sua realocação...

Fato é: Gente, no mundo globalizado, vale quase nada. Isso fica muito evidente com a grita crescente da turma da Faria Lima, a questionar o valor das coisas e o custo país para as pessoas. A resultante da equação é sempre desfavorável ao descamisado...

Gente atrapalha quem é pragmata e vive de somar custo e subtrair benefícios...

A toda evidência o esforço higienista da administração paulistana revela-se direcionado e sem qualquer filtro; passando pelos ofendículos postos nos viadutos (que o Padre Júlio em bom tempo derrubou – bom trabalho Padre, não me canso de cumprimentá-lo) e desaguando na remoção de famílias que vivem em carros no Brás, seu alvo ainda é o pobre que encontra um ligeiro bálsamo para aliviar a dureza da vida...

E nós outros, que estamos protegidos da chuva? Qual nossa circunstância em face disso tudo?

Infelizmente nós seguimos a nos incomodar com a pobreza dos que se valem de restos (sob viadutos e dentro de carros abandonados) e não com a miséria que lhes levou a esta encruzilhada...

Sentimos a perda da paisagem e não nos comovemos com a dureza da conjuntura que está a subtrair-nos viadutos limpos e ruas sem carros abandonados...

Não há qualquer esforço em sentido contrário, ao tempo em que valorizar, cuidar, ajudar, se colocar no lugar de gente, hoje em dia, não é senão a resultante de uma equação financeira, quando não ‘mimimi’...

Ademais, os envolvidos seguem ‘perdendo os verdes’ – obrigado Caetano, ainda que eu só reconheça duas cores: o preto e o branco, ambos sem preconceito de cor (vai Corinthians!).

De toda sorte, medidas dessa natureza seguem perdendo o trem verde da história, suposto que em época de dificuldade pandêmica não se vê muito administrador valorizar pessoas e plantar árvores...

Seguimos errantes a errar quando chega a hora de cuidarmos uns dos outros, suposto que é mais fácil e barato impedir o acesso ao ‘abrigo do viaduto’ (sério isso?), e a retirar do carro estacionado quem não tem um teto a lhe abrigar, do que implementar políticas públicas que enfrentem tais circunstâncias...

Ainda que a turma da Faria Lima não concorde com os gastos, ainda que os muros altos dos condomínios sigam sendo o menor custo benefício para quem pode viver ao abrigo de nossa desgraçada equação social...

Tristes e acovardados trópicos, onde gente não vale o imposto que muita (outra) gente não paga. Saudade Pai.

João dos Santos Gomes Filho, advogado