Como é possível golpear a democracia e não cair nas garras institucionalmente defensivas da mesma? Esta pergunta tem sido feita desde a posse do atual presidente. O que está acontecendo no país, em que um presidente eleito pelas vias democráticas as atropela e as afronta sem nenhum pudor? Malgrado os seus apoiadores, sempre ávidos em defendê-lo, negarem o fato, é indiscutível que ameaçar o STF e o Congresso com manifestações ostensivas e provocantes, ou descumprir leis andando em público sem máscara (abraçando apoiadores e algumas crianças), provocando aglomeração em frente ao Quartel General do Exército, onde seus seguidores pediram intervenção militar e um novo AI5, é flertar com regimes antidemocráticos.

Usou e abusou do bordão surrado do anticomunismo dos porões da ditatura militar. Esse anticomunismo que absorveu, entre outras fontes, de seu ídolo, o torturador Brilhante Ustra, com a nítida intenção de desgastar a democracia. Nunca, desde 1985, quando os militares saíram do poder, a democracia no Brasil sofreu um desafio deste tamanho, como agora com Bolsonaro.

Mas isso não é nada! Aliás, com este senhor, toda a surpresa fica menor quando o dia seguinte amanhece! O desmonte das organizações em que a participação popular era a garantia da perenidade do processo democrático, e o afrouxamento intencional da fiscalização por parte dos órgãos que combatem grilagens e desmatamentos, bem como a ridícula intervenção negativa na política de fiscalização rodoviária, tem revelado o grande devorador da teia que fabrica o regime democrático e o Estado de Direito.

Um presidente, eleito democraticamente, despreza as regras que o elegeram e se tornou uma voz denunciante do próprio sistema eleitoral. Aliás, não nos escapou, a intrigante coincidência do ataque orquestrado ao TSE e as afirmações trumpianas de Bolsonaro sobre o mesmo sistema de apuração.

Porém, os mecanismos internos de defesa das instituições democráticas receberam um reforço nos últimos dias. A queda de Trump, o já chamado crustáceo da Casa Branca, foi um alívio para o mundo em geral. A Europa, aliada histórica dos EUA, respirou feliz, salvo as exceções que infelizmente surgiram ultimamente e que viam no presidente americano a sua inspiração. Não há dúvidas que o negacionismo e a política xenófoba receberam uma revanche com as eleições americanas. E com isso, a extrema direita do século XXI que vinha saindo alegre e segura dos porões da humanidade.

O papa Francisco sob, ataque interno e externo, não tem titubeado: para que o planeta seja, não só habitável, mas um lugar ao sol para todos, sob uma ecologia integral, não podemos pactuar com regimes que não vejam nos outros (países ou indivíduos) um irmão. Regimes totalitários modernos, que se aproveitam da escada democrática para ascender ao poder e depois a explodem e se tornam perenes, já nos bastam os da Turquia e da Venezuela.

Bolsonaro lançou mão de tudo que estava ao seu alcance para minar o sistema. No entanto, o posicionamento firme do STF e, pasmem, o mau humor de uma boa parcela de seus apoiantes o frearam. No momento parece ter-se contentado com o apoio do Centrão que a seu jeito, na já conhecida barganha política, não deixa de manchar a beleza da democracia.

O país não pode baixar a guarda se quiser pertencer ao grupo seleto dos 11% em que o Estado de Direito ainda funciona. 2022 será um bom teste para o que estou escrevendo. Trump fez de tudo para que os EUA, quem diria, se tornassem uma republiqueta de bananas. O ensaio desse golpe demandou uma longa caminhada. Segundo muitos especialistas, o câncer continuará no organismo social americano por muitos anos. Talvez o assustador mesmo sejam os mais de setenta milhões que votaram nele. Resta-nos o consolo por cá, de verificar que a influência de Bolsonaro nas eleições municipais tenha revelado ao Brasil o seu real patrimônio eleitoral original: nada mais do que isso!

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese Londrina