O ano em que dom Pedro Casaldáliga morreu foi o ano em que invadiram a casa de Ênio Pasqualim, líder do movimento dos Trabalhadores Sem Terra no Paraná, em Rio Bonito do Iguaçú, e o assassinaram...

Dom Pedro foi feroz defensor das ligas e dos movimentos que o campo brasileiro pariu, lutando toda a sua vida em favor dos descamisados que produziam a fortuna alheia sem muita condição dignitária na troca. Sua luta propicia resgatar as efemérides que se impõe entre o suor que a lida cola e o desvelo que a mais valia impõe...

Lembramos dom Pedro Casaldáliga quando noticiaram o brutal assassínio de Ênio Pasqualim. Ao resgatar a lembrança vivíssima de dom Pedro imediatamente ocorrem os questionamentos de sempre: o que, afinal, queremos da vida? Mais explorar e menos sonhar? Ter vale ser?

Catalogamos os (des)caminhos de nossa sociedade adoecida ao tempo em que não iniciamos um combate mínimo ao cálice emblemático das soluções contemporâneas de nossas diferenças históricas. Assim seguimos matando, fazendo arminha, negando a pandemia, combatendo as vacinas, os esforços de dom Pedro, o conhecimento de Galileu... Estamos criando uma geração negacionista e isso é terrivelmente assustador.

Não queremos falar de punitivismo seletivo que essa equação não nos alcança mais. Já vencemos a corrida contra os imbecis do tempo. Somos sobreviventes, vacinados que fomos na UEL, ainda nos anos oitenta.

Estamos, pois, imunizados contra a política fascista dos estados de desigualdade, consistente em espraiar, por seus mastins midiáticos de época, o conceito de que o castigo (seja qual for sua natureza) recompõe o esgarçado e rasgado tecido social – foi assim ontem, com o Alborgheti; é assim hoje com o Datena e não há sinais de mudanças no horizonte...

Queremos muito falar de dom Pedro e sua luta contra o arame farpado que dividia e cercava a propriedade, estabelecendo nichos de posse no país mais desigual do mundo. Dom Pedro, contrário senso dos terraplanistas, não queria mais que dignidade para o trabalhador rural.

Identificar nichos de exploração laboral e os combater não se contrapõe ao respeito para com a propriedade privada, tampouco interceder em favor dos descamisados nas relações trabalhistas privadas não faz do humanista um comunista – ainda que essa ideia nos pareça extraordinária...

‘Tempo rei, ó tempo rei, transformai as velhas formas do viver’, cantou o bardo de todos os baianos e orou dom Pedro a seus fiéis, às margens do Araguaia. Infelizmente não conseguimos progredir o suficiente em direção às transformações que a vida reclama e o tempo solapa...

Vamos a passo de ganso, em um viés de muita luta e colhendo as sobras do cotidiano, caminhando para o dia de amanhã, mas é o hoje que nos sobressalta, notadamente enquanto segue escorrendo o sangue do mais fraco. Do despossuído, do descamisado.

A polícia irá fazer as investigações de praxe, apontar um suspeito também de praxe e o judiciário canonizará possível e provável sentença condenatória ditada pela sociedade em Tribunal do Júri – tudo conforme o manual dos gilipollas...

Mas não é isso que uma sociedade progressista e temente a Deus deveria aguardar João? Não só isso, ainda que também isso, notadamente se as práxis evoluíssem...

Dramático é assuntar a equação e seguir banalizando a vida, diminuindo o seu extraordinário significado, amesquinhando a hipótese do outro pensar e viver de forma diversa da nossa.

Seguimos rotulando com etiquetas secularmente desgastadas (negro, gay, sapatão, feminista, comunista, puta) e não somos capazes de nos indignar quando um trabalhador (seja de qualquer seguimento) é retirado de sua casa e assassinado.

A violência cobra um preço e esse custo alto é a desumanização que nos faz todos gilipollas insensíveis, discutindo situações e circunstâncias negacionistas que o mundo afastou ainda no advento do iluminismo (século XVIII), enquanto a boiada passa, perpetrando a farpa no arame e não evoluindo o suficiente para diminuir as diferenças.

Tristes e sanguinários trópicos, onde Moraes Moreira, Aldyr Blac, Elis Regina, Charles Chaplin, Linda Lovelace, Tim Maia, Martin Luther King, Billie Holiday, meu amado Pai e tantos outros seguem fazendo muita falta – e onde o que não falta é quem pague pistoleiro para sangrar as diferenças...

João dos Santos Gomes Filho, advogado