O país está doente! Além da pandemia que já dizimou quase 160.000 pessoas, parece que estamos perdendo valores fundamentais da nossa sociabilidade, como cuidado, empatia e responsabilidade. Preocupa sobremaneira a insensibilidade e a naturalização com que parcelas da população encaram a tragédia. A pandemia atravessou o mundo sem escolher fronteiras, mas a forma como cada cidadão encarou o problema fez toda a diferença. É fato que 160.000 pessoas morreram em menos de 8 meses, o que é equivalente à queda de dois aviões por dia. Espanta, no entanto, a banalização com que o governo, endossado por parte da população, encaram a catástrofe.

Muitos podem dizer que se trata de uma situação inevitável, que foge ao nosso controle. Porém, não se pode relativizar algo que se efetivou de forma assimétrica em diferentes regiões do planeta. A diferença está diretamente relacionada com o posicionamento assumido por cada governante. É notório que os dois países com maior número de mortes, são os mesmos em que os governos assumiram atitudes negacionistas diante da ciência e displicência sobre os efeitos da pandemia na população.

O mesmo traço de insensibilidade e de naturalização da tragédia, parece se repetir diante dos últimos números da ONU que apontam o Brasil no limiar de voltar ao mapa da fome, com aproximadamente 12 milhões de famintos, algo que havíamos superado em 2014. O escândalo é ainda maior por sermos o terceiro maior produtor de alimentos do mundo, com 240 milhões de toneladas/ano, grande parte destinada à exportação. Mais uma vez, naturaliza-se a realidade, dando invisibilidade às vitimas ou até mesmo atribuindo-lhe culpa pelo próprio infortúnio. É escandaloso que o país conhecido como celeiro do mundo permita que parte da sua população não tenha sequer o que comer. A alta dos alimentos, em parte é provocada por se priorizarem as exportações ao comercio interno, impulsionadas pela alta do dólar, o que reduz a oferta interna e faz os preços dispararem, numa lógica de divinização do mercado que não aceita interferências, nem mesmo para salvar vidas. O cenário tende a se agravar com o fim do auxílio emergencial em nome de se equilibrar o déficit fiscal, simplesmente porque não se quer mexer nos privilégios do 1% mais rico.

O que aconteceu com o povo afetuoso e generoso que um dia fomos, ou talvez apenas imaginássemos ser. Recebemos de braços abertos imigrantes do mundo todo, que aqui foram acolhidos por uma população, que aos olhos do mundo transbordava simpatia e hospitalidade. É evidente que as iniquidades e a exclusão sempre marcaram a nossa historia, mas também a generosidade se fazia presente, num processo dialético que nos enchia de esperança de que um dia a grande fraternidade dos trópicos poderia ser materializada. Mas ao que parece nunca conseguimos ir além da copa do mundo! Prefere-se a maximização de lucros para poucos a assegurar a vida para todos. Vale lembrar o saudoso Darcy Ribeiro:

“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista.”

Luís Miguel Luzio dos Santos, professor de Socioeconomia da UEL, autor do livro "Ética e Democracia Econômica".