ESPAÇO ABERTO - Das decisões absurdas e seus efeitos
Músicos russos que moram há décadas fora da Rússia estão desempregados. Racionalmente, de que forma esse esse boicote irá ajudar a Ucrânia?
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sexta-feira, 25 de março de 2022
Músicos russos que moram há décadas fora da Rússia estão desempregados. Racionalmente, de que forma esse esse boicote irá ajudar a Ucrânia?
Roberto de Mello Severo
Goste ou desgoste de Olavo de Carvalho, mas o fato é que é dele uma frase que, certamente, abrange grande parte dos membros dos dois lados: - “O imbecil fica indignado por qualquer coisa. Mas quando o imbecil tem um justo motivo para ficar indignado, sua reação é tão absurda, que ele se torna o errado da história”.
A guerra absurdamente defenestrada contra a Ucrânia por Putin, ao menos no mundo ocidental, guarda unânime sentimento de abjeção. No entanto, como em toda guerra, surgem efeitos reflexos que, nem sempre, são muito elogiáveis.
Um deles é a busca pela censura declarada pela arte russa, que nada tem a ver com a guerra. E a mesma não vem apenas das “grandes mentes” que habitam o facebook e o twitter, mas de grandes centros culturais e até de universidades.
A Universidade de Milão, recentemente, cancelou um curso sobre Dostoiévski. Indicar a leitura de Gogol ou Tolstói, entre outros, virou ofensa. A Ópera da Polônia cancelou a apresentação de Boris Godunov, de Mussorgski. Tchaikóvski, Schostakovitch, Stravinsky, Prokofiev e Rachmaninoff estão praticamente banidos em todos os lugares, inclusive em rádios.
E o que eles fizeram? São aliados de Putin? Não são, porque já estão todos mortos. E a maioria dos acima citados, vivos estivessem, estariam presos hoje se pisassem na Rússia de Putin. Aliás, pelo nível cultural de Putin, ele deve até rir e apoiar esse boicote, torcendo para que todos esses sejam esquecidos.
Músicos russos que moram há décadas fora da Rússia estão desempregados. Bolsas de estudo foram canceladas. E fica a indagação: - racionalmente, de que forma esse boicote irá ajudar a Ucrânia?
Aos críticos de plantão, muitos deles que sequer leram um parágrafo do Machado de Assis russo (Dostoiévski), ignoram que o mesmo ficou preso na Sibéria por quatro anos – por se opor à oligarquia russa da época. Schostakovitch foi perseguido e teve sua obra banida por Stálin.
Tchaikóvski, que tinha origem ucraniana (tchaika é uma ave da Ucrânia), já estava banido na Rússia há décadas por ser homossexual. Recentemente, Putin o “indultou” post mortem – como se isso o tornasse benevolente. E agora, o banimos novamente, sob ares de quem faz justiça. A ignorância é tamanha que se esquece que Gogol era ucraniano, tendo apenas morado em São Petersburgo.
Mas ainda que russos fossem, porque sua obra deve pagar pelos crimes de um grupo? O que se ganha, culturalmente, por essa obnubilação coletiva? Até mesmo o Russian Tea Room de Nova Iorque, que de russo só tem o nome (pertence a norte-americanos), está às moscas. E até o infeliz strognoff está banido de muitos restaurantes.
O fato é que temos a necessidade atávica de condenar, de agredir publicamente. E isso, em guerras, é contumaz. Vivemos uma espécie de novo “macarthismo”. A perseguição é nossa companheira.
Enquanto muitos criticavam os campos de concentração nazistas, os EUA colocaram 11 mil cidadãos norte-americanos em um “internato” (neologismo para campo de concentração – internment camps), tão somente porque tinham ascendência germânica. Um deles ficou “internado” até 1948 – três anos após o fim da guerra.
E fez o mesmo com norte-americanos de ascendência japonesa, que nada tinham a ver com a guerra. A propósito do Japão, o escritor japonês Haruki Murakami, recentemente, a pretexto da guerra contra a Ucrânia, colocou músicas específicas em seu programa de rádio, como forma de reforçar o sentimento antiguerra, afirmando que: “A música tem o poder de parar a guerra? Infelizmente não. Mas tem o poder de fazer os ouvintes acreditarem que a guerra é algo que devemos parar”.
A música de Wagner, em muitos lugares e por muito tempo, ficou proibida (não mais). Mas ele relativamente mereceu, seja porque era um declarado antissemita, seja porque suas óperas são, em certos momentos, um porre.
No mais, não se sintam mal por compartilhar “Crime e Castigo” e “O Idiota” de Dostoiévski (você não estará sendo um homônimo fazendo isso). Leia “Anna Karenina” de Tolstói. Coma sem culpa seu strognoff – até mesmo porque você está comendo qualquer coisa, menos stroganov (a receita é outra e vai pepino em conserva - não tem nada a ver com seu prato). O faça ouvindo o Conserto n. 02 para Piano de Rachmaninoff, e você será muito feliz. E mire suas preces para o povo ucraniano.
Àqueles que insistem em boicotar obras que pertencem à humanidade, e não à Rússia, o oitavo círculo do inferno de Dante, que é bem mais movimentado que o de John Milton, está reservado para dois grupos de pessoas: para os corruptos e déspotas como Putin, e para o outro grupo no qual, tenha certeza, você está inserido.
Roberto de Mello Severo é advogado.
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