Nossa biografia de nação tem um legado de não pertencimento. Os antepassados, de várias nacionalidades, vieram, trabalharam, constituíram famílias, ajudaram na construção do país, mas externam comportamentos a exigir um retorno à pátria de ascendência. São vidas não analisadas no divã da brasilidade que lutam e driblam a burocracia em busca de uma identidade suplementar à porta do consulado do país de origem. Aspiram, em sua maioria, tirar a “cidadania” e deixar uma oportunidade para filhos e netos. Contardo Calligaris, na recente introdução de sua obra “Hello, Brasil!”, diz que “o colono não quer voltar, mas acha que seu sonho não é mais aqui, então ele sonha que os filhos voltem para a Europa ou com a continuação da viagem”.

A depreciação do país e de suas instituições, uma constante homilia de boa parte dos brasileiros, talvez vai além do sentimento de colono, assimilado por muitos, diante de uma hierarquia que assenta em nível superior a figura do colonizador, esteio do velho coronel – tão bem caraterizado por Victor Nunes Leal em Coronelismo, enxada e voto – e de seu dileto filho, o “doutor”. Os que ocupam o andar de cima são os mesmos que outrora aplaudiram o Estado Novo e marcharam pela supressão do regime representativo. Hoje, os filhos seus, maturados nessa pátria gentil, conclamam atos antidemocráticos com o propósito de empurrar a história de volta ao passado.

Um sistema político que girou em falso boa parte de sua história, sem ocupar-se de integrar o andar de baixo, e tomado constantemente de assalto por arroubos autoritários, continua incapaz de firmar a maturidade cidadã de seus membros.

A cidadania implica na inclusão de todos em uma comunidade política e exige o reconhecimento simétrico de direitos, sobretudo, os que facultam o exercício livre dos interesses políticos. Cidadania se realiza junto às regras jurídicas, as quais exigem um nível de sociabilidade regrada pelo auto-respeito. Cidadania requer igualdade, não dualidade.

A percepção de que ainda persistem grupos que colonizam e falseiam as regras do jogo político, deixando parcela da população à margem, como se fossem colonos abandonados à própria sorte, não coopera para alicerçar a solidez democrática almejada. A leitura psicanalítica de Calligaris mostra que “a justificativa dessa dualidade é simples: eu quero um país respeitável, mas, se o país me desconsidera como cidadão, por que eu o respeitaria como país? Ou seja, por que eu não sonegaria imposto, se o país me sonega cidadania?”

A ausência de cidadania é sintoma de que tanto a sociedade quanto o Estado não se firmaram integralmente, deixando vácuos ocupados por lideranças que prometem improvisar arbitrariamente o que o poder público não conseguiu realizar institucionalmente. É nesse contexto conflagrado que nascem mandatários que desejam ser mais temidos do que respeitados e fazem da ameaça uma afronta permanente à legalidade.

O sentimento de muitos – que se percebem vítimas de injustiças – é temperado com raiva e ressentimento, sendo explorado por incendiários que apostam na destruição da fauna política e jurídica do país. Para isso recuperam moinhos de ventos já sepultados e lustram o velho comunismo, pau para toda obra, com ameaças astrológicas repaginadas.

Acrescente, ainda, os novos inquisidores, que carregam a Bíblia numa mão e a arma na outra, convictos de que acenderão novamente a fogueira santa, ao mesmo tempo que lutam para colocar um bezerro de ouro no altar do Supremo Tribunal Federal. Suas marchas desacreditam as balizas do Estado de direito e diminuem o respeito aos preceitos democráticos.

No limiar do ocaso, forma-se uma tempestade perfeita com força de aniquilar a cidadania ativa, a única, segundo Hannah Arendt, a garantir o direito a ter direitos.

Clodomiro José Bannwart Júnior, professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Londrina.