.Néia, que dá nome ao observatório de sua própria história – e de tantas outras mulheres vitimadas pela ignorância machista – já está em outro plano. Não conseguiu vencer a violência então tentada contra sua vida e partiu...

Triste e miseravelmente humana, a tragédia de Néia vem sendo a tragédia de Marias e Clarisses no solo do Brasil, naquilo que conta a história da má formação cidadã que faz do mundo um panóptico das próprias mazelas – no caso o machismo e a ausência de empatia, bem como assim o desconhecimento da sororidade...

Conheci Néia pelos olhos de minha filha, engajada jovem advogada que fincou bandeira em defesa da mulher e levou para o lado certo da luta o próprio pai. Isabeau Lobo, minha caçula, desde sempre tem me ensinado a lutar como uma menina e lhe sou imensamente grato pelo carinho do resgate...

Filha, eu te amo!

Noves fora e velho machista que estive, devo à minha menina de olhos da cor do mundo o entendimento aperfeiçoado de que a violência, principalmente a de gênero, é a fronteira a não ser desafiada, suposto que permeia o pior da própria danação, naquilo que represa seus alvos de destino entre as minorias e as mulheres por sua condição, desaguando a (des)razão no escuro de nós outros por motivos que, na irracionalidade temática que elegem, são nada – ainda que se exprimam sobre a dor da própria história.

Ainda assim a violência de gênero (como de resto a própria violência) é de ser permanentemente enfrentada. Ela tem que ser explicada em casa, por primeiro, para, quando o infante ascender aos outros grupos sociais (escola, amigos, igreja), já o faça com um comprometimento mínimo do que seja respeito, afeto, sororidade, empatia...

Essa dor, que atravessa séculos, passou da hora de dar lugar aos conceitos humanistas que o iluminismo fez acender, pronunciando um tempo de empatia cuja matrícula encontra seu arrimo na educação...

Meninos mimados além de não poderem reger a nação devem se reaprumar, se reeducar em respeito cidadão a fim de lograrem um outro olhar sobre as dificuldades e as frustrações da vida, porque a mulher não é um seu objeto...

A vida a dois tem que ser (re)significada, repaginada. A relação deveria mais aprender do que supostamente ensinar, suposto que os valores que se difundem secularmente negam à mulher sua condição natural de absoluta igualdade com o homem – ainda que as correntes machistas do medievo insistam na coisificação feminina.

Feito um tango de Piazzola as relações humanas deveriam pautar as tragédias no encontro, jamais no desencontro, suposto que a sociedade de hoje é muito distinta da que o feudalismo registrava. Evolui a sociedade, não evoluem os costumes?

É tempo de rever espaços, resgatando nos relacionamentos a empatia e o respeito, para que la salida e la caminada conjuguem-se em el giro e el cierre, movimentos cujo conjunto contam na história da tanguédia o desafio musicado dos desencontros da vida...

Simples feito a morte, Néia não pode ser apenas uma estatística a alimentar o rebanho de meninos mimados que matam ao serem contrariados. Não é não. Sempre e em qualquer ocasião e, se os relacionamentos se esgotam, a vida segue, como foi ontem, é hoje e será amanhã.

Assim, por poderosa que Néia seja, sua morte não lhe cala a voz nem apaga seu rosto; Néia vive em suas irmãs, em sua mãe, em suas amigas e, principalmente, no entorno do Observatório de Feminicídio Londrina, cujo vero escopo "por nenhuma a menos" já lhe vale uma estadia na posteridade.

Somos Néia e eu sou, particularmente, grato à desconstrução que vivi para entender e colar no coletivo do amor uma página pequena de sua continuidade.

Néia presente.

João dos Santos Gomes Filho, advogado