ESPAÇO ABERTO - A religião e a invasão da Ucrânia
Será bom termos presente a configuração religiosa atualmente na Ucrânia.
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quarta-feira, 16 de março de 2022
Será bom termos presente a configuração religiosa atualmente na Ucrânia.
Padre Manuel Joaquim R. dos Santos
Quem percorre os jornais pelo mundo afora perceberá que um dos principais desafios do momento é tentar decifrar as verdadeiras razões que motivaram e sustentam a invasão da Ucrânia. Não são poucos, os que fazem correr tinta descrevendo a personalidade do principal protagonista, Vladimir Putin! Ali estaria a absurda génesis da guerra.
Mas um bom número reforça a tese de que a OTAN foi longe demais nos anos subsequentes à Guerra Fria e com isso provocou o inquilino do Kremlin. Uma boa parte também resgata a performance histórica da Rússia ao longo dos séculos, evidenciando a sua vocação imperialista e enumerando as inúmeras ações bélicas. De fato, a Rússia czarista protagonizou vários episódios de tensões e conflitos de índole expansionista.
Mas eu creio que há algo mais. Há uma parcela substancial, que vem da profunda e estranha ligação de Putin com a Igreja Ortodoxa russa. Como nos lembra Thomas Bremer, da Universidade de Münster, a adesão à Igreja Ortodoxa pode ser tanto religiosa quanto cultural na Rússia. É uma questão de identidade.
Será bom termos presente a configuração religiosa atualmente na Ucrânia. Desde o fim da União Soviética até 2018 houve três igrejas ortodoxas ativas na Ucrânia: a Igreja Ortodoxa Ucraniana sob o Patriarcado de Kiev, a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana e a Igreja Ortodoxa Ucraniana sob o Patriarcado de Moscou.
Nesse ano, consumou-se a unificação das três, contando com apenas uma parte da Igreja Ortodoxa Ucraniana (sob o Patriarca de Moscou), que faz parte da Igreja Ortodoxa Russa. A maioria da população na Ucrânia é cristã (71,7%), mas se divide entre essas três. Cerca de 67,3% dos ucranianos são cristãos ortodoxos (28,7% do Patriarcado de Kiev, 12,8% do Patriarcado de Moscou e 0,3% da Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana). Outros 23,4% se reconhecem simplesmente como 'ortodoxos' e 1,9% praticam tipos de ortodoxia.
A origem de tudo isto está no século X. O príncipe Vladimir converteu-se à fé cristã, foi batizado na Crimeia e adotou o cristianismo ortodoxo como religião oficial. Na época, o povo de Kiev foi batizado em massa no rio Dniepre. Aliás, Putin já fez dois discursos evocativos dessa origem para reforçar os laços “indestrutíveis” entre os dois países.
Desde o século XVII Moscou acha que tem o poder delegado por Constantinopla para ordenar o principal bispo de Kiev. Tudo ficou pior quando, em 2019, o Patriarca Ecumênico Bartolomeu I reconheceu a Igreja Ortodoxa da Ucrânia como independente de Moscou! Hoje as duas Igrejas estão de relações cortadas.
Configurou-se nos últimos anos uma sórdida adesão do líder da Igreja Ortodoxa Russa às ideias de Putin. Nunca se criticaram as intervenções na Geórgia, Azerbaijão e Ucrânia. O Patriarca Cyril constantemente reforça o projeto do governo, explicitando o Russkiy-mir (pensamento russo) e com isso, o óbvio: a hegemonia de Moscou sobre as Igrejas das nações que antes faziam parte da União Soviética e sobre territórios adjacentes!
Casos como a Geórgia e a Belarus apresentam dificuldades de unidade com Moscou, mas a substituição de bispos tem sido a ferramenta dessa “ortodoxia”! Recentemente, na entrega de uma honraria no Kremlin, o bispo de Mariupol, Monsenhor Hilarion, disse: “Nosso departamento às vezes é chamado de Ministério das Relações Externas da Igreja. Isto não é correto porque não estamos preocupados apenas com as relações externas, mas também com as relações inter-religiosas em nossa pátria. E nos últimos anos nos sentimos cada vez mais como uma espécie de departamento de defesa, porque temos que defender as fronteiras sagradas de nossa Igreja”! Malgrado esta postura, a reação geral das várias religiões na Ucrânia contra a invasão foi peremptória e incluiu mesmo vários padres do ramo moscovita da Igreja ortodoxa!
Por conseguinte, não precisamos evocar Shakespeare, para deduzir as imensas razões pouco republicanas que podem se somar às ditas “oficiais”! Há um desejo inconfesso da Igreja russa de manter as fronteiras dessa Igreja tal qual ela acha que foi “herdada”. Ficam então mais compreensíveis as palavras do discurso de Putin: “As autoridades ucranianas transformaram cinicamente a tragédia da divisão da Igreja em um instrumento de política estatal. A atual liderança do país não responde às exigências dos cidadãos (pró-russos ortodoxos) de revogar as leis que violam os direitos dos crentes”!
Como nos lembra Lorenzo Prezzi SCJ, na longa história da Ortodoxia, não há elaboração do possível conflito entre o poder civil e eclesiástico. Sempre foram gêmeos siameses.
Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese de Londrina
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