A ideia de que um crime estatal é cometido apenas sob regimes explicitamente autoritários ou em situações de guerra calha ser comumente aceita, mas não deve. Pois, geralmente envolvem atos que por sua natureza são ocultados, porque quem os cometeu está no comando do aparato punitivo, da administração da justiça e do uso do monopólio da força, ou seja, quem os pratica tem como garantia a impunidade. Razão pela qual a necessidade de apontar esses atos reside na urgência de nomear o que normalmente não é nomeado.

Os crimes de Estado são cometidos sob o peso de um discurso justificativo, muitas vezes em nome de um “bem geral”. No atual cenário pandêmico, tem-se priorizado a economia, descartando as pessoas consideradas obstáculos aos objetivos econômicos ou substituíveis dentro do mercado. O elemento de controle populacional se acentua com a emergência de conter ou eliminar populações que não respondem, resistem ou se rebelam.

Como se não bastasse, em alguns casos, deliberadamente a decisão de certos Estados tem sido de sacrificar a sociedade, por loucura, interesse econômico ou eleitoral. Uma versão tragicamente caricaturada são citações como "os avós estão dispostos a morrer para não prejudicar a economia" do vice-governador do Texas (EUA), ou a famigerada frase de Bolsonaro, "todos morreremos um dia".

O que estamos vivenciando, as imagens que chovem na mídia e nas redes sociais dos cemitérios que transbordam e das fileiras e mais fileiras de caixões não são causadas apenas pela pandemia, mas também pela implantação de um sistema que sacrifica vidas. Essa crise também expõe os crimes estruturais dos governos. Se a pandemia é um fato inesperado e acidental, por outro lado, a inércia operacional e a incompetência de gestão são atos previsíveis e calculados.

Nesse sentido, para realizar a possível caracterização do comportamento omissivo do Estado, é fundamental saber como os agentes públicos tem reagido à crise de saúde que eclodiu no Brasil, e deve ser lembrado, a esse respeito, que o STF afirmou, amparado na Constituição, que compete a todos entes federativos (União, Estados, DF e Municípios), concorrentemente, estabelecer normas de combate à pandemia.

Se considerarmos que a Covid-19 está apresentando uma situação ambiental que pode se repetir, devemos agir segundo a lógica de abrir precedentes, não jurídicos, mas sociais. A tendência que agora vemos de normalizar o que é bárbaro deve ser interrompida. Decidir o que pode ser aceito como normal será algo vital e fundamental para enfrentar a crise humana que o Brasil atravessa.

Daniel Marinho Corrêa é professor, servidor do TJ-PR, mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina, com extensão pela Harvard University (EUA).