Não bastassem as inúmeras dificuldades que nos assombram por causa da pandemia, imprimindo em nós um modus operandi longe da normalidade perdida e acarretando aumento dos quadros depressivos, com as pessoas manifestando tristeza, insônia, dores, irritabilidade, sensações de desesperança ou mesmo desespero, temos mais um fato que me parece o mais dilacerante: não tem sido permitido aos enlutados chorar os seus mortos, conforme a tradição. Em algumas situações, nem um “último adeus”. Alguns psiquiatras afirmam que poderão surgir traumas futuros graves, por insuficiência de choro no local certo ou ambiente adequado. Se um velório “conveniente” ajudaria na imprescindível reconstrução, que se torna vital para dar continuidade à existência, a crença numa vida que não pode ser tragada por um vírus, é de extrema importância.

As religiões monoteístas são unânimes em afirmar que a vida não termina no cemitério e que o caixão não é o final da linha. Não se trata, evidentemente, de um simples consolo para os enlutados, mas, se fruto de uma crença, é peremptoriamente um diferencial no confronto com a despedida inevitável, mormente com as vítimas da Covid. Uma vida que configure em seu DNA vestígios de eternidade, se impõe aos lamentos da perda definitiva dos entes queridos.

O islão é categórico: “guardai-vos de um dia, em que sereis retornados a Allah; em seguida, cada alma será compensada com o que logrou, e eles não sofrerão injustiça.” (Alcorão 2:281). Cada alma experimentará a morte e, apenas, no dia da ressurreição, sereis compensados com vossos prêmios. Então, quem for distanciado do fogo e introduzido no paraíso, com efeito, triunfará. E a vida terrena não é senão gozo falaz”. (Alcorão 3:185). Para o Islamismo, é a vida pós-morte que merece deferência e à qual se subjugam os interesses da atual.

A religião judaica tem uma visão tardia de ressurreição. No tempo de Jesus ainda existiam grupos de destaque que não a aceitavam. Os Saduceus, por exemplo, a rejeitavam (Mt 22,23-33). Apenas no judaísmo pós exílico, já perto do advento Cristo, essa concepção de vida eterna ganhou consistência. Constatamos esta nova concepção no livro dos Macabeus e no livro de Jó: “Porque eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus.” (Jó 19,24), bem como em Isaías 26,19.

Quanto ao cristianismo, a morte e a ressurreição de Jesus são os pontos nevrálgicos da religião. Em Cor 15, 12 ss Paulo deixa claro o que existe por trás da fé cristã: a certeza de que o morto na cruz ressuscitou. E mais: “se a morte veio por um homem, também a ressurreição por um homem veio”. Ele foi a primícia. O puxador da fila. Em Cristo todos os que adormecem ressuscitarão. É sobre esta premissa que os adeptos do ressuscitado pautam a sua fé e a sua vida terrena. Aliás, em Lc 24 é o próprio Jesus que pergunta com certa ironia: “porque procurais entre os mortos, Aquele que está vivo”?! Portanto, a vida humana terrena é automaticamente relativizada, se bem que paradoxalmente valorizada, à luz da dignidade que cada homem e cada mulher detêm como filhos de Deus. E é sobre esta realidade, de certa forma dualista, que deve ser construída a nossa existência. “Não temos aqui morada permanente” (Hb13), mas neste mundo criamos laços, fazemos filhos e sonhamos com o amanhã. Para que tudo isso tenha sentido muito além do caixão fechado, sempre antes da hora, o cristianismo aponta para o absoluto e definitivo que está garantido e que se revelará como ato, cujas meras potências ainda somos deste lado.

A certeza de que a morte não encerra mais do que um ciclo faz com que voltemos do funeral com a cabeça levantada e os olhos postos no horizonte. Não é pouco. Acreditar que quem nos deixa, vive para sempre, nos devolve a vontade de continuarmos vivendo.

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese de Londrina

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