Imagem ilustrativa da imagem ESPAÇO ABERTO - A libra de carne dos mortos da Covid-19
| Foto: Fernando Crispin/Amazônia Real/Fotos Públicas

Há, em Londrina, uma pá de negacionistas. Sessenta (número estimado) gatos pingados se reuniram, domingo passado (24/10), na confluência rotatória das avenidas Juscelino e Higienópolis, em protesto à exigência da apresentação de um passaporte de imunização pela vacina, bem assim contra um decreto municipal do Alcaide que obriga servidores a se imunizarem. Chegaram a cobrar do Prefeito a assinatura de um termo de responsabilidade alusivo aos possíveis efeitos colaterais da vacina...

Londrina se aproxima, cada vez mais, do circo de horrores que o berrante de sérgio reis anunciou ao convocar o rebanho de adoradores de mitos: Mugir é preciso, pensar não é preciso...

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Por que não queres tomar vacina, oh incauto vendilhão da ciência? A agulha te incomoda ou, sério, acreditas que estarás suscetível a contrair a maldita síndrome da imunodeficiência adquirida? Julgas que a Cuca se revelará? Outro tanto, que, ao dar o braço à picada, estás a contribuir para a desmistificação de vosso mito?

Falemos de mitos – porque a hora é agora. O faz de conta, conforme Pessoa, segue sendo ‘o nada que é tudo’. Todavia, o que seria o tudo ou com quantos mitos se faz a realidade?

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Assombrado assisto a pandemia matar (só no Brasil mais de seiscentas mil pessoas). Estas mortes, cedo ou tarde, cobrarão a libra de carne que Shylock judicializou na busca de seu crédito pela garantia dada por Antônio – leiam, a leitura nega o berrante e faz pensar sobre o próprio mugido...

A peça imortal de Shakespeare (O Mercador de Veneza), para muito além da relação jurídica que desafia (a libra de carne não pode vir com sangue derramado. Como cortar, então, sem deitar o plasma?), desnudou a prece (definitiva) por clemência em juízo quando Pórtia (se passando pelo jovem Advogado Baltasar, porquanto as mulheres não podiam exercer o ofício da advocacia à época) ousou dizer ao Tribunal dos Dodges venezianos: "A qualidade da misericórdia não é prejudicada. Cai como a chuva suave do céu sobre nós. É duas vezes mais abençoada: abençoa aquele que dá e o que recebe."

Arrematou com minha construção favorita: "No curso da justiça, nenhum de nós deve ver a salvação".

Sou cidadão muito por conta do Bardo dos bardos e minha cidadania me fez Advogado. Casei com a mulher de minha vida, há trinta anos, também porque ela é uma extraordinária Advogada (muito maior que eu – não que isso seja difícil). Meus dois filhos são notáveis Advogados. Minha vida está ladeada pela condição de dizer o direito dos que são apontados (em juízo ou cortes) e eu, que construí este caminho, já não o quero trilhar, desde que a humanidade passou a ver "salvação no curso da justiça".

Quando se busca salvar o mundo pela entrega da jurisdição, invariavelmente o julgador se despe de própria "par conditio", abraçando um messianismo ególatra, maltratando respeito e empatia.

A só ideia de "salvação no curso da justiça" estabelece o ambiente propício ao justiçamento que encanta os tolos e aduba as médias familiares (jornalões comerciais) na criação de suas narrativas de interesse. Interessado o estado de direito se perde no pó da estrada...

Sigo, todavia, devoto do Bardo dos bardos. Em especial por seu Mercador de Veneza. Afianço-lhes que não seria o sujeito que sou sem Shakespeare – sempre soube disso. Mas é Fernando Pessoa, com sua fabulação inventiva do "nada que é tudo" a jogar a pá de cal que selou meu desgosto momentâneo com a advocacia...

Estou farto de semideuses. É de gente que sangra, chora, menstrua, tem a pele escura. De pessoas delicadas e alegres que a vida é feita – e é de gente viva que nos bastamos, que os mortos desta pandemia não são senão vítimas circunstanciais das políticas neoliberais que lhes disputam a imbecilização terraplanista, tanto quanto os que tombaram em guerra.

Assim, ao protestarem contra a ciência – que é o que se depreende da manifestação passada na rotatória da Juscelino com a Higienópolis – os sessenta tiraram a libra de carne dos mortos em pandemia, sem se importarem com o sangue escorrido. Haverá cobrança...

Todavia, lembro que não há honra em negar a ciência. Não há grandeza em não se condoer. Não há inteligência em protestar contra atos pró vida – notadamente em nossos dias pandêmicos. Não há, tampouco, humanidade que sobreviva ao desconhecimento das minorias.

A vida em sua plenitude clama atenção com os que ficam também em respeito aos que se foram. A vida é mais, os mitos não são – porque o nada pode até bastar, mas não irá me salvar.

"Redimido pela noite" entrego um penúltimo parágrafo para lembrar que todo protesto é válido. Eu próprio sou um andante a serviço do protesto. Digo de mim há uns quarenta anos: Sou um católico não convicto que protesta. Protesto aqui e agora contra quem não respeita a ciência, porque não consigo deixar de lado a estupidez da coisa – é que o berrante não me disse nada...

"Distraídos venceremos" Paulo. Saudade pai...

João dos Santos Gomes Filho, advogado

A opinião do autor não reflete, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina.

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