Ao longo de séculos a população negra tem empreendido a luta pelo reconhecimento de sua humanidade neste país. A desvalorização cotidiana vivenciada pela população que possui a cor de pele negra é uma realidade que provoca dor e sofrimento e a aloca em espaços segregados de pobreza e à margem do acesso aos direitos básicos.

Uma das expressões mais profundas do racismo no Brasil se expressa mediante os apelidos pejorativos e xingamentos relacionados aos animais irracionais. Quando se compara a população negra ao símio retira-se dela o que há de mais precioso e sagrado: a alma, a racionalidade, retira-se a sua humanidade. A animalização, ou seja, a zoomorfização dos/as negros/as no Brasil é parte de um processo de aniquilamento, de subjugação e expressão de violência extrema, pois atinge a estima reduzindo-os/as aos irracionais.

A existência do racismo entranhado na sociedade brasileira explica muitos males e opressões sofridos pela população negra. Inúmeros estudiosos mostraram em seus trabalhos a origem, o desenvolvimento e as consequências do racismo. Contudo, além de considerar o racismo com base nos estudos das relações raciais, das desigualdades, da discriminação e dos aprendizados pós-coloniais, entre outros, é necessário combater fortemente o fenômeno da animalização das pessoas negras, pois são recorrentes as manifestações de violência expressadas em apelidos, xingamentos e estereótipos, conquanto vistas, muitas vezes, por quem assim age como se fosse apenas brincadeira, como algo jocoso, sem perceber que está ferindo, geralmente de forma profunda, a pessoa, objeto dessas manifestações.

Vale lembrar a existência de zoológicos humanos até a metade do século XX, em especial em alguns países europeus, como França, Bélgica, Alemanha e Inglaterra, com consequências que persistem no século XXI. Pois, ainda hoje, uma das expressões mais violentas do racismo é o xingamento em que a pessoa negra é igualada a animal irracional e sua pessoa desvalorizada (Pascal Blanchard).

Durante o período escravocrata os escravizados eram considerados “peças” destituídas de humanidade. Humanidade que hoje é reivindicada na luta contra a desumanização e a inferiorização de toda população negra, como consequência do racismo expresso nas diversas formas de violência. O racismo presente impacta a vida da

população negra em todos os âmbitos sociais, incluídos os lugares e lócus sociais. Suas manifestações são naturalizadas e aceitas pelas instituições sociais como regra e não exceção.

A naturalização do racismo mediante a desumanização da pessoa negra é um poderoso obstáculo à superação das desigualdades. Negar a humanidade da população negra é expressar, do modo mais perverso e violento, o racismo existente no Brasil. Os estigmas provocados pela animalização da pessoa humana provocam dor e feridas profundas, muitas vezes jamais cicatrizadas. As vítimas da animalização têm suas trajetórias individuais e coletivas estigmatizadas, marcadas, muitas vezes, de forma definitiva. A zoomorfização não é inédita, é parte da violência cotidiana sofrida pela população negra ao longo de séculos.

É chocante e impressiona o prepotente exercício do privilégio da branquitude, daquele que impõe quem deve ou não se sentir ofendido ao ter a sua humanidade questionada com xingamentos zoomorfizados. Essa prática leva a tentativa de extinção da população negra sem que haja sentimento de culpa por parte daqueles que se consideram civilizados. Ninguém tem autorização para dizer como devemos nos sentir ao tentar animalizarmo-nos.

Maria Nilza da Silva, professora de sociologia e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros - NEAB/UEL