ESPAÇO ABERTO - A filosofia explica o tapa de Will Smith
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terça-feira, 05 de abril de 2022
Adriana de Cunto - Diretora de Redação
Em março, durante a maior festa do cinema do mundo, na entrega do Oscar, vimos Will Smith, um dos atores mais famosos de todos os tempos, corajosamente, se levantar do seu local na plateia para dar um tabefe na cara do apresentador da noite, Chris Rock, também, um ator e comediante extremamente famoso. Will Smith foi motivado por uma das falas de Chris Rock, que durante a apresentação do evento fez piada com Jada P. Smith, sua esposa, que possui alopecia, uma doença que causa falha e perda dos cabelos. Minha proposta neste texto é fazer uma breve leitura filosófica sobre o assunto tão debatido nos últimos dias.
Para começar, podemos tentar aplicar o imperativo categórico (um dos conceitos mais quentes de Immanuel Kant), que em resumo, anuncia que não devemos universalizar más ações, já que se assim fosse, então cada um teria de aceitar que essas máximas fossem aplicadas em si mesmos. Explico: não é possível anunciar a máxima "pode-se fazer piada com doentes" (pensando na ação do Chris Rock) nem tampouco que "pode-se reagir a uma humilhação moral aplicando uma agressão física" (pensando na reação do Will Smith). Ora, se aceitássemos essas máximas, então qualquer um poderia fazer piada com as nossas doenças e também poderíamos cair na porrada com alguém que nos xingasse no trânsito. Nada bom. Isso claramente aumentaria o caos e o mal do mundo. É isso que Kant ensina.
Mas este ocorrido, do Chris Rock com o Will Smith, possui, a meu ver, uma particularidade muito interessante: o tapa na cara parece ser uma agressão, não apenas física, mas também moral. Em certa medida um tapa na cara é desmoralizante: ataca diretamente o caráter e parece diminuir o tempo em que sozinho o indivíduo chegaria até o sentimento de remorso. Quero dizer, em outras palavras, que Chris Rock poderia se arrepender no fim da noite quando fosse colocar sua cabeça no travesseiro (ou talvez, depois de vários anos), mas Will Smith, quando dá um tapa na cara do apresentador, faz o tempo desse arrependimento se abater de modo instantâneo. O tapa na cara, portanto, chacoalha e põe nos eixos o caráter daquele que o recebe. Entenda aqui, por caráter, aquilo que temos de mais interior em nós, nossa personalidade íntima.
Para se pensar em outras agressões que atacam o lado moral do ser humano, posso referir-me a alguém que aperta os peitos de um homem com ginecomastia ou dá-lhe uma ‘dedada’ no meio das nádegas; no caso das mulheres, quando recebem um ‘tapinha’ na bunda que nada possui de carinhoso, mas meramente esconde a perversão e a incapacidade da conquista pela fala e pelos valores. Todas essas coisas velam um ataque desmoralizante que instrumentaliza o corpo do outro em um sentido depreciativo (e que é sentido moralmente no caráter); no entanto, o dito “tapa na cara bem dado”, é uma depreciação, por vezes positiva: ensina, educa e protesta!
Se pensamos mais uma vez em Kant e no imperativo categórico, ambas as personalidades aqui debatidas estão erradas. A questão é saber quem está mais errado. Não tenho resposta segura e certa para isso, porém, parece que Will Smith, ao escolher especificamente o tapa na cara (e não um soco, um chute ou uma voadora), iguala-se com a agressão moral e verbal do Chris Rock (ainda que Will tenha feito uso do seu corpo físico para encostar no rostinho meigo do humorista).
O tapa na cara, portanto, é um protesto daquele que não conseguiria, com palavras, expressar sua indignação em relação ao que ouviu: faz aquele que o recebe acordar para a vida. Isso é tanto verdadeiro que o Chris Rock nem se indigna ou responde à altura, pelo contrário, entende rapidamente que ultrapassou os limites da liberdade de expressão. Chris Rock é “mordido" pela sua própria consciência após receber o tapa – é o que talvez diria Schopenhauer.
Então a formulação final fica assim: agressões morais (pense na fala do C. Rock), atacam diretamente o caráter (no caso, o caráter de Jada P. Smith que não pode mudar aquilo que ela é em essência, e isso quer dizer, ser alguém que possui uma doença que não escolheu ter, por isso, tem que lidar com ela quer queira ou não) e tapas na cara, desde que dados no feeling certo (pense no W. Smith), são contra-ataques proporcionais e não incorrem em injustiça, pois atingem diretamente o caráter do outro. Will Smith, portanto, pouco fere o corpo de Chris Rock; a agressão é mais moral do que física, embora tenha feito emprego de suas mãos.
Antonio Alves, professor de filosofia, Maringá
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