João do brejo não era ninguém, nem para o Sistema de Saúde. Era invisível. Negaram-lhe identidade, cidadania e o pior, dignidade de pessoa humana! João não está só. É uma tragédia dupla, ter que afirmar que infelizmente ele está acompanhado! No ano passado, foram 2570 resgatados de uma não vida, como a do João! Este ano já estamos em mais de 500. Brasileiros e estrangeiros que sobrevivem sem TV, Rádio, Jornal, Internet, sem mundo exterior! Esse é o muro da escravidão que os impede de vir à luz! Casualmente, alguns escapam. Estamos em 2023, na terceira década do século XXI. Mas eles não sabem. Este João, chegou em 1984. Passaram-se 39 anos em que a única lembrança que possui ocupa toda a gaveta onde se situa o modo rotina! Levantar, trabalhar, dormir, levantar e trabalhar! Ele nem imagina que a Lei Áurea (Lei nº 3.353), foi sancionada pela Princesa Dona Isabel, filha de Dom Pedro II, no dia 13 de maio de 1888.

Os séculos XX e XXI não são alheios à perversidade do comércio de seres humanos! As galés, as naus, as caravelas, os navios negreiros, deram lugar a Boeings que atravessam os ares, levando pesadelos em forma de sonhos na cabeça e no coração de meninas, que atualmente atendem pelo nome de “escravidão moderna” ou “tráfico sexual”! Não é a única! Refugiados pobres, nas mãos de máfias conterrâneas, comércio de órgãos e trabalhadores mantidos em situação análoga à de escravidão, em fazendas e apartamentos chiques! Estes últimos dois séculos, não podem desdenhar de seus antecedentes!

Estes dias, o mundo recebeu a notícia de que três grandes vinícolas gaúchas utilizaram trabalho escravo em suas vinhas. Em que pese o direito ao contraditório e à ampla defesa, uma delas se diz envergonhada por trabalho escravo! Em carta aberta, a vinícola Aurora afirma que vai redobrar a atenção ao tema do trabalho escravo, além de garantir que o erro não se repita. “Os recentes acontecimentos envolvendo nossa relação com a empresa Fênix nos envergonham profundamente. Envergonham e enfurecem. Aprendemos com aqueles que vieram antes que, sem trabalho, nada seríamos. O trabalho é sagrado. Trair esse princípio seria trair a nossa história e trair a nós mesmos. Entretanto, ainda que de forma involuntária, sentimos como se fora isso que fizemos”, diz a missiva. Um vereador de Caxias que pediu que 'empresas não contratem mais aquela gente lá de cima', em referência a baianos, após saber de trabalhadores resgatados em condições de escravidão, será cassado em breve, pelo que tudo indica.

O que já se escreveu sobre a escravidão se aplica Ipsis litteris às situações trazidas mais uma vez pelos noticiários. Nenhuma diferença. Se a índole de algumas pessoas, as leva a ver nos outros, apenas mão de obra e barata, nada nos resta que o rigor da lei. Desapropriação imediata da terra ou da empresa e aplicação das penas previstas. Estes não patriotas, que negam a vida ao seu semelhante, depõem contra o próprio país e conspiram a favor da barbárie. É inconcebível que ainda tenhamos que conviver hodiernamente com crimes dessa estirpe que muito nos envergonham e indignam. Assim eu espero! Impressionou-me sobremaneira, que a dois pés do casebre insalubre onde João se escondia como um animal domesticado, exista uma vistosa e aparentemente bem cuidada capelinha de fazenda! Junto com a escravidão moderna, paradoxo da nossa civilização, encontramos um autêntico divórcio entre fé e vida, por parte de muitos crentes! Driblando as principais páginas sagradas, acreditam insanamente poder prestar culto ao Criador, desprezando as criaturas! Nunca será demais resgatar Mt 25, 35: “tive fome e não me destes de comer, sede, e não me destes de beber”! A ganância nos faz lembrar de Gandhi: “há o suficiente no mundo para todas as necessidades humanas, não há o suficiente para a cobiça humana” Ou então quem sabe, de Epicuro: “nada é suficiente para quem o suficiente é pouco. ”

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Pe Manuel Joaquim R. dos Santos

Arquidiocese de Londrina