“A escuridão não pode remover a escuridão; apenas a luz pode fazê-lo. O ódio não pode remover o ódio; apenas o amor pode fazê-lo” - Martin Luther King

Há dias, enquanto passava um pano na cozinha após lavar a louça do almoço, chegou até mim uma das críticas mais ferozes e azedas que já recebi, sobre os artigos que publico na FOLHA. Me acusava de mentir descaradamente sobre o atual governo, me metendo em assuntos que não são meus. Que sou injusto e ingrato para com o Brasil, uma vez que sou estrangeiro.

Obviamente, não responderei àquela longa mensagem, e não lembrarei a essa pessoa que os mais de 160.000 brasileiros em Portugal têm um tratamento digno e civilizado, salvo raras exceções criminosas. Eu mesmo, sempre me senti em casa, ao abrigo da lei que garante direitos iguais a portugueses e brasileiros, tanto lá quanto cá.

Contudo, creio que me dá o ensejo para falarmos de uma tragédia nacional, até há pouco tempo distante, ou referente a países teocráticos do Médio Oriente. Falo do fanatismo. O fanatismo é a monopolização de uma perspectiva; de uma ótica de abordagem; de uma opinião que visa eliminar qualquer possibilidade de surgimento de diálogo, companheirismo e civilidade.

O Brasil sucumbiu ao fanatismo. Embora muitos aleguem sempre ter existido, eu tenho comigo, que não faz parte da alma, nem da cultura do povo brasileiro. O fanatismo é essencialmente receio de se perder algo que nunca se teve! É uma pseudo segurança dos que não querem abrir mão, do que consideram mais importante que tudo, inclusive a sua própria pessoa e sua axiologia.

O país de Bolsonaro tornou-se um antro de muitos fanáticos, capazes de obrigarem uma empresa de Sinop a retirar outdoors críticos ao presidente, como se de uma inquisição se tratasse, condenando sem julgamento e obrigando à retratação os proprietários.

Estou convicto que este não é o Brasil real. O Brasil histórico. Do futebol, do samba, multirracial, acolhedor, trabalhador e gigante pela própria natureza. Porém, o fanatismo está pautando os almoços de domingo, eliminando cunhados, primos e até irmãos, da suculenta massa da mama. Está fazendo pessoas mudar de religião e quiçá mudar de bairro. Perscruto com apreensão, o momento presente, que se configura num retrocesso à barbárie que nunca nos caracterizou.

Ao convidar um português a regressar ao seu país, rasgamos a história, as leis, a convivência civilizada e os valores; enfim, tudo que temos como mais precioso. Ao apelidarem o Papa Francisco de comunista, porque ele gosta de ecologia, direitos humanos e minorias, rasga-se a fé, a crença e o bom senso. Vive o país um momento delicado, flertando com o totalitarismo.

Não creio que o problema seja apenas o Bolsonaro, com as suas intenções fascistas indisfarçadas. O preocupante é o que uma gama substancial de brasileiros enxerga na pessoa dele e no seu modus operandi! Não é de liberalismo que estamos falando, nem de ordem e progresso e muito menos de desenvolvimento econômico. O cerne da questão está no negacionismo científico, na homofobia, na misoginia e em expressões como, bandido bom é bandido morto.

O exemplo do partido Republicano nos EUA, que por tremenda infelicidade não se desgrudou de Trump e busca nos Estados onde é majoritário aprovar leis que inviabilizem o próprio processo democrático nas eleições legislativas do próximo ano, é assustador. A minoria do lado de cá questiona o processo eleitoral, um sistema que nos deveria orgulhar! Fanatismo é a negação do que está dando certo e de tudo que impeça o retrocesso. Ele é autofágico e ignóbil. Ninguém se sente bem ao ser chamado de fanático, mas uma boa parcela parece sentir-se confortável em assumir essa performance.

O fanatismo revela uma hipocrisia extremamente perigosa, que o Brasil não pode desejar para si mesmo. Há poucos dias, Londrina inaugurava uma arte com guarda chuvas no lago Igapó. Belíssima e encantadora. Mas o momento não tolera isso e logo foi chamada de comunista e sofreu tentativas de vandalismo. A corrosão do tecido social e a polarização levada ao extremo gerarão inevitavelmente uma desintegração da nação.

Termino com a definição da palavra: “fanatismo diz respeito a um excesso de admiração ou zelo cego e veemente em relação a alguma coisa; é um sentimento de cuidado excessivo, que não raramente produz desprezo e intolerância para com qualquer elemento diferente em qualquer campo ou domínio a que esteja associado”!

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos. Arquidiocese de Londrina