Leio, em todo lugar, o saldo da última ‘operação policial’ realizada no Rio de Janeiro. Foi na favela do Jacarezinho. O placar mostra 27 mortos civis contra uma morte de policial. Não há mérito algum no que ocorreu por lá – tenha passado o que passou.

Vivenciamos no ato extremo uma dose absurda de violência. A danação, de sua vez, é filha pródiga do desapego cidadão que celebra a ruptura contratual de nossos dias, pontuada na desafetação da investidura pública qualificada, na medida em que é o estado, ao delegar em favor de suas polícias um ‘múnus’ qualquer, quem está na ponta de lança da atividade em exercício.

Assim, antes de colocar seu bloco na rua, o estado tem o dever de conduzir a folia e saber quem são seus foliões para, no desenvolvimento de suas políticas, ter um controle (ainda que mínimo) de suas consequências – notadamente quando o funcionário público vai ao morro armado...

Matar nunca constituiu prerrogativa da polícia, ainda que essa súcia fascista que quebra placa com nome de vítima de violência, não pense assim...

Foi tão absurda a ação policial na comunidade do Jacarezinho que o escore não deixa muita margem a minimização crônica que parte de nossa circunstância política tem reiteradamente adotado.

Observo que a serpente não caiu do céu. Ela foi gestada no ovo fascista que a irresponsabilidade social implementou com a guinada dos cinco últimos anos. Estamos filhos desse desarranjo político e, nesta medida, sofrem as minorias...

Vinte e sete a um é um baita placar de desencanto minoritário e de abandono estatal.

Se houver quem queira discutir esta circunstância de nossa atual conjuntura política, aguardo o pretenso debatedor começar/aprender a ler.

Espero alguns anos de acúmulo de conhecimento humanístico (vinte e oito em homenagem aos que perderam a vida na comunidade) e, aí sim, se ele não tiver entendido o que leu, me disponho ao enfrentamento...

Não é mais possível minimizar o que sequer se pode tolerar. O vilipendio na comunidade do Jacarezinho plantou 28 cadáveres pelas mãos de uma operação policial então vedada pelo STF...

Deveras, há tanta violência se exibindo país afora que temo desconhecer o Brasil em uma eventual retomada de nossa assombrada normalidade.

Isso porque estamos há algum tempo minimizando o show de horrores que a desconsideração das minorias significa e esse desserviço cidadão nos lançou ao mar de nossa tormenta originária, onde navegamos contra uma corrente universalmente estabelecida...

Não bastasse o prumo equivocado ter matriz na imbecilização de muitos conhecidos, na horrenda e trágica desconstrução de parentes e amigos que abraçam seus mitos de estimação, à despeito destes não serem nada e, nada sendo passam a ser tudo, naquilo que preenchem de vazios existenciais a rupturas cognitivas severas, a tragédia pontual que desconstrói nossa condição humana, vem desenhada em nome de religiões – que não vou pagar placê e embarcar na mitigação do comércio religioso e jogar na conta de Deus nosso delírio civilizatório...

Não se concebe a face de Deus no assassinato de vinte e oito pessoas em uma comunidade pobre.

Essa é uma obra do homem do século XXI. Esse homem moderno que rompeu com Deus e abraçou a religião...

Não temos mais tempo de seguir sonolentos. Não há mais espaço para dúvidas e, se não tínhamos certeza certa do caminho, a chacina da favela do Jacarezinho aponta uma qualquer direção contrária...

Já passou o tempo de mitigar a própria ignomínia trazendo em justificativa o nome de Deus e o combate a qualquer dos cancros históricos de latino américa...

Deus não armou o homem e lhe plantou dúvidas negacionistas em nome de terraplana. Essa é uma obra do homem que se desapegou do criador, ainda que bifurcando a língua e falando e agindo como se em nome do Pai.

Há falsos profetas que usam do púlpito para mitigar a busca do conhecimento que liberta, suposto que a ignorância lhes abastece templos ao tempo em que corrompe a verdade.

É falsa a fala de que os vinte e sete cidadãos mortos eram todos bandidos. Ainda que fossem (‘argumentandum tantum’) o estado lhes devia um tratamento justo, em nome do contrato social então estabelecido.

Quanta dor ainda está por vir? É hora de despertar.

Tristes e abandonados trópicos. Saudade pai, você e minha amada mãe me armaram com livros...

João dos Santos Gomes Filho, advogado