Redimido pela escuridão do dia é na estupidez alheia que me encontro no luto pelo assassinato brutalmente qualificado e extraordinariamente covarde do congolês Moise Kabagambe. A boçalidade colada na futilidade do motivo fala por si...

Não sinto a dor de Moise (talvez imagine, nem isso posso garantir) mas vivencio a solidão da hipótese de três covardes agredindo até a morte um negro, à luz do dia, na areia da praia da Barra da Tijuca, sob o sol ocidental das milícias de latino américa...

Não sou nem estou punitivista (que o punitivismo é pai dessa miséria, enquanto a concentração brutal de renda é sua mãe). Sou um cara que vem gritando há décadas em favor das minorias. Moise é negro, estrangeiro, pobre e prestador de serviço informal em quiosque praiano sob área de ‘proteção’ das milícias (ouço nas redes sociais). É, portanto, minoria dentro da sua própria condição minoritária...

Moise veio da República do Congo em busca de refúgio (abrigo) político no brasil. Assim foi feito na medida em que o reconhecemos digno de ser protegido e abrigado por estar fugindo de conflito armado ou violação de direitos humanos no Congo – seu país natal.

Imagem ilustrativa da imagem ESPAÇO ABERTO - A carne mais barata do mercado...
| Foto: iStock

Na condição de refugiado político Moise trabalhava informalmente em um quiosque praiano no Rio de Janeiro e foi lá que, ao cobrar duas diárias em atraso (R$200,00), recebeu a surra final patrocinada por três agressores covardes. Apanhou até morrer...

A história de Moise seria a mesma se ele fosse branco? E se tivesse registro com carteira profissional assinada por seu empregador? E se a área do quiosque não estivesse no radar das milícias?

Fujo do uso da condição hipotética ‘se’ o quanto posso. O ‘se’ é de pertencimento onírico e diz respeito ao desenho dos que metaforizam o dia na noite que não escurece. Aqui dia e noite andam escuros à ponto de o sol escaldante da praia não inibir miliciano ou apaniguado de milícia – farinha do mesmo saco...

Moise, por seu conjunto circunstancial, é minoria em um país que governa para as maiorias. O próprio messias asseverou esta condição. Enquanto minoria o congolês foi tragado e apanhou até morrer.

O refugiado Moise não venceu as próprias mazelas...

Não se trata, a toda evidência e no entanto, de uma qualquer desavença que desaguou em tragédia. O desenho ofertado aponta uma tragédia (abandono das minorias) que emoldurou a própria desavença (exploração das minorias).

Gostaria que o proprietário do quiosque exibisse a carteira de trabalho do jovem congolês...

Ser negro, pobre, estrangeiro, trabalhador informal e, enquanto portador de tais características, ainda se sujeitar ao embate com interesses milicianos no Brasil de messias, não é definitivamente um bom negócio. Vou além: já não podemos garantir a segurança dos refugiados se qualquer de seus interesses colidir com a querença volitiva do poder miliciano.

Cazuza já alertava nos anos oitenta em alto e belíssimo som: ‘Brasil, qual o nome do teu sócio’?

O espectro coletivo por aqui está sub judice. Hoje corremos atrás de osso e pele para engrossar a sopa das letras de ódio que matam a fome, ao tempo em que alimentam o abismo social que a aventura golpista de 2016 só faz aumentar...

Há uma ponte? Ela aponta um futuro? Jovens negros seguem morrendo espancados neste futuro?

Moise, todavia, não pode se tornar fria estatística. Ele tem que ser (antes) estátua. Erguida na areia da praia da Barra da Tijuca, de preferência onde hoje está o quiosque.

Estão apurando (com uma semana de atraso, é bem verdade) e já tem gente presa. Isso não consola...

A forma asselvajada com que o jovem congolês foi morto escreve um capítulo à parte em nossa moderna aptidão de perseguir minorias. Moise foi primitiva e covardemente assassinado porque é minoria.

Não chego sugerir Moise enquanto nome de rua porque no Rio de Janeiro há uma cultura incipiente que rasga placa com nome de caminho. Moise não precisa morrer outra vez para que um brutamontes imbecilizado qualquer se manifeste...

Moise, todavia, é o certificado real de nossa falência coletiva. Ele significa a incapacidade empática que nos abraça enquanto, abraçado a seus assassinos na dança da agressão fatal, o jovem congolês pontuou vitimado pela vitimização secular que caça minoria por aqui.

Gritar a quem? Pedir em qual condição? Moise já é passado. Aqui o tempo é rei, como disse Gilberto. Bem por isso o quiosque (com o alvará caçado desde que a imprensa noticiou o assassinato covarde) segue símbolo de nossa tragédia existencial...

O epitáfio possível registra: aqui dorme Moise, reconhecido e abrigado refugiado político que não conseguimos proteger, apesar de assim lhe prometer. Foi vítima do país que estamos. Adeus e nos perdoe Moise; quando você nos escolheu protetores, nós não éramos assim...

Fato é: estamos assim. Matando negros, gays, pobres, estrangeiros, anões de jardim, mulheres, e todo aquele que não cultue a ditadura do pensamento único, suposto que insensíveis não nos criamos...

Tristes e embrutecidos trópicos. Saudade Pai.

João dos Santos Gomes Filho, advogado

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