A psicóloga da USP, Maria Julia Kovacs: “Infelizmente poucas pessoas sabem que o paciente tem o direito de escolha (em relação ao seu final de vida)”
A psicóloga da USP, Maria Julia Kovacs: “Infelizmente poucas pessoas sabem que o paciente tem o direito de escolha (em relação ao seu final de vida)” | Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

Ainda tabu para muitos, a morte é inevitável e por isso mesmo precisa fazer parte das conversas familiares, de assuntos práticos como doação de órgãos, sepultamento ou cremação até últimos desejos, partilhas de bens e um item ainda desconhecido de muitas pessoas, as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV). Espécie de lista de instruções sobre o que o paciente gostaria ou que não gostaria que fosse feito em seu tratamento, caso fique inconsciente, o documento não precisa ser registrado em cartório.

Docente do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) e membro do Laboratório de Estudos sobre a Morte, a psicóloga Maria Julia Kovacs esteve em Londrina no mês de março para participar do I Congresso de Direito das Famílias e Sucessões do Interior do Paraná, realizado pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), com apoio da Subseção OAB-Londrina.

Para ela é fundamental que as famílias conversem sobre o assunto. “Acho que infelizmente poucas pessoas sabem sobre isso, que o paciente tem o direito de escolha, o que está fundamentado em o direito de escolha da pessoa em relação ao seu final da vida, e em relação aos processos.”

- As pessoas confundem morrer com dignidade e a eutanásia. Qual a diferença entre elas?

Morrer com dignidade é um conceito mais amplo que envolve uma série de questões e, inclusive, nos países onde é legalizada a eutanásia ou o suicídio assistido. Como no Brasil nenhuma das duas questões está legalizada, a ideia de morte com dignidade é a ideia de você ter uma morte sem sofrimento, sem tratamentos invasivos, e que você possa ir com calma, às vezes se possível em domicílio, com presença de pessoas importantes, sem recorrer à eutanásia ou suicídio assistido porque não temos aqui essa possibilidade.

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- Em um artigo a senhora comenta que algumas pessoas têm medo de parar o tratamento médico e não ter acesso a cuidados. Ainda hoje, a senhora avalia que a situação continua dessa forma ou já melhorou?

A situação melhorou muito, mas as pessoas ainda confundem o fazer tudo com o tratamento na unidade de terapia intensiva (UTI), uma série de tratamentos invasivos. Principalmente o alívio da dor que é o problema mais sério no fim da vida e o problema respiratório podem ser feitos num quarto de hospital ou até mesmo em casa, com cuidados de home care, ou outra possibilidade, sem recorrer à tratamentos invasivos. Medicação que alivia a dor, que alivia desconforto, se a pessoa está fraca uma alimentação que pode ajudar nessa situação até a finalização da vida e em muitos casos também há um pedido que não se ressuscite a pessoa se, por exemplo, houver uma parada cardíaca.

- Muitos desses procedimentos são feitos para trazer mais conforto para os familiares do que para o próprio paciente, justamente por os familiares acharem que não estão preparados para aquela perda?

Os familiares são familiares, não sabem às vezes nem sobre a doença nem sobre os tratamentos, estão muito aflitos, querem que a pessoa viva, que ela não sofra. Então é muito importante acompanhar a família durante todo o processo de adoecimento. Isso é uma coisa importante. Os cuidados devem ser focados principalmente naquilo que o paciente precisa. Isso é muito importante mas sempre esclarecendo o paciente se ele estiver lúcido e a família, sempre, o tempo todo. Sem dúvida, há alguns tratamentos que talvez não fossem tão necessários para o paciente porque talvez ele não está mais consciente, ou nem sente tanto, mas são situações que podem deixar a família um pouco mais tranquila. Se isso não acarretar nenhum sofrimento a mais para o paciente, não for uma situação muito complicada, não há porque não fazer.

- Apesar de sermos latinos e termos a fama de sermos mais emotivos, ou justamente por isso, entre nós o falar sobre a morte é bem negligenciado. A senhora acredita que isso possa trazer grandes consequências?

Acho que quando estamos no âmbito da psicologia, é muito difícil falar genérico. Temos vários tipos de latinos: os latinos mesmo, os imigrantes, temos uma gama muito grande de pessoas. Em segundo, temos histórias de vida muito diferentes, famílias que lidam com a situação de um jeito, de outro, a questão da religiosidade, da espiritualidade tem um efeito grande também, então não dá para falar de uma maneira geral, embora a gente diga sim que os latinos são mais expansivos. Sobre a dificuldade de falar sobre a morte, ela existe desde a metade do século passado por causa de uma concepção errônea de que a medicina deveria evitar a morte, combater, o que está errado, não temos como combater a morte, temos que lidar com doenças e cuidar de pessoas. No tempo que venho estudando a questão acho que está se abrindo mais, hoje há possibilidade de falar sobre o assunto, as pessoas procuram lugares onde se fala, também na formação de profissionais de saúde, então está melhor do que estava. É um tema difícil e dentro desse tema alguns deles são mais difíceis: final de vida de uma pessoa, por exemplo, com o câncer, ou hoje, até mais complicado do que o câncer, pessoas com demência, doença de Alzheimer, que é uma forma de demência, porque aí muitas vezes a pessoa está saudável fisicamente mas quanto ao emocional e cognitivo, ela está muitas vezes, perturbada. É difícil porque como você vai falar de morte com uma pessoa que aparentemente está bem, saudável? Isso causa uma sobrecarga muito grande para os familiares.

- Como funcionam as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV)? Qualquer pessoa pode fazer? Qual o momento para isso?

As DAV são eventualmente conhecidas em outros países como testamento vital, quando a pessoa, além da distribuição dos bens, fala do que ela gostaria que acontecesse no final da vida dela, e depois da vida dela. Aqui no Brasil resolveu-se usar esse nome e seriam instruções ou vontades expressas pelas pessoas, antecipadas porque não serão no momento da morte, serão antes, a qualquer momento da vida. Elas dão essa possibilidade de a pessoa poder participar de uma forma mais ativa do seu final de vida, do que ela gostaria, do que ela não gostaria que se fizesse. Não tem uma idade certa, pode começar a qualquer idade, é um documento escrito mas pode ser também falado para alguma pessoa de confiança, que seja da família ou da equipe médica. O escrito parece que dá alguma consistência maior para essa situação. O Conselho Federal de Medicina propôs na Resolução 1995 de 2012 que esse documento seja válido como exercício de vontade e que deve ser respeitado, mesmo que a equipe considere que outros tratamentos sejam possíveis. A vontade do paciente prevalece sobre a vontade da família e dos profissionais. Hoje aquela ideia que o profissional seria processado porque não fez x, y, z tratamentos que deveria fazer porque tem o documento, não seria processado porque é um documento do Conselho. A turma do Direito tem um papel importante nessa questão, embora no Brasil as diretivas não sejam lei. Há países onde é lei. Em Portugal, por exemplo, a diretiva funciona e é ilegal você fazer um procedimento que não está colocado ali ou que está pedindo que não seja realizado. Muitos advogados acham que para ter mais consistência deveria ser registrado em cartório. Seja como for, acho que o mais importante é você poder conversar, se tem possibilidade, com o seu médico ou com algum médico que você eleja para isso, com os seus familiares. Fale sobre isso, converse e veja quem será a pessoa que pode te representar caso no momento talvez você não tenha mais consciência.

- Seria interessante antes de fazer esse documento conversar com um médico para saber quais os procedimentos que podem ser feitos em determinadas situações, para poder escolher com consciência o que eu quero ou não quero?

Exatamente, é muito importante poder conversar com um médico, inclusive ele pode orientar porque às vezes a gente põe como impedimento certos tratamentos, porque achamos que eles são muito ruins, mas eles podem ser importantes no momento em que ainda é possível alguma recuperação. Eles dizem que o documento deve ter muito mais princípios do que falar sobre tratamentos. É interessante colocar: “eu não quero que a minha vida seja prolongada se não houver possibilidade de recuperação”. Muitas vezes a pessoa diz que não quer ser entubada, mas a entubação poderia ser importante e a pessoa poderia ter uma boa recuperação. São nuances, por isso é interessante conversar com um médico e o documento é uma diretriz, um princípio, não é definitivo, tanto que você pode mudar a qualquer momento, principalmente se não tiver essa questão cartorial, pode fazer um novo documento a qualquer momento. O mais importante disso é a comunicação.

- Há algum impedimento para que a pessoa faça esse documento?

Esse é um ponto extremamente vulnerável. Há uma médica carioca, Cláudia Burlá, que faz um trabalho muito interessante com pessoas com doença de Alzheimer. Quando ela vê o diagnóstico, (se) a pessoa ainda tem possibilidade de consciência, de se manifestar, é muito importante orientar poder fazer (a DAV) porque a pessoa ainda poderá fazer aquilo que gostaria e talvez num momento mais para a frente não consiga fazer. Eu não sei do ponto de vista legal se tem algum impedimento, por exemplo, alguém que tenha doença mental. Do ponto de vista psicológico, uma pessoa que tenha doença mental tem possibilidade sim de falar sobre a própria vida, sobre o próprio sofrimento. Inclusive não tem ainda discussão sobre, por exemplo, pessoas que têm depressão, tentam suicídio, se elas podem escrever um documento dizendo que elas não querem ser salvas em uma tentativa, por exemplo. Normalmente todo esse processo é feito, se podemos chamar, com doenças de ordem física. Mas do ponto de vista psíquico sempre tem essa discussão, será que a pessoa tem competência mental, será que ela pode avaliar? É muito complicado.

- E como as famílias lidam com esse documento, ao descobrir de repente que o paciente não quer ser reanimado, por exemplo?

Eu acho que hoje todo o princípio está fundamentado na comunicação, na possibilidade que os familiares conversem sobre isso, pensem junto e o paciente ao fazer a diretiva, ou ele faz junto, ou ele avisa a família que fez, entrega uma cópia do documento para alguém da família que ele ache que seja alguém que pode representá-lo. Esse seria o ideal, mas muitas vezes não é assim que acontece, o documento está lá e se acontecer alguma coisa repentina, e a família não souber, esse documento pode ficar perdido. Outra coisa, talvez a família não concorde e aí, de novo, é uma questão de conversar: “eu quero, é a minha vida que está em jogo”. Poder ter essa negociação em vida enquanto as pessoas podem conversar, (é) melhor. Acho que infelizmente poucas pessoas sabem sobre isso, que o paciente tem o direito de escolha, o que está fundamentado em o direito de escolha da pessoa em relação ao seu final da vida, e em relação aos processos. Você está reafirmando que a pessoa é responsável pela sua vida e que ela pode fazer escolhas.