Entardecer em Macondo...
Nesse preciso momento a outrora apelidada ‘terra da liberdade’ se curvou ao que, de fato, sempre foi um gigantesco entreposto comercial
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quinta-feira, 30 de janeiro de 2025
Nesse preciso momento a outrora apelidada ‘terra da liberdade’ se curvou ao que, de fato, sempre foi um gigantesco entreposto comercial
João dos Santos Gomes Filho
Ao angustiar meus anseios (e fantasias) na leitura de comentários ‘passa pano’ para o sieg heil que Elon Musk mandou no evento de posse do presidente estadunidense, meio que abandono as ilusões (sem lhes dar adeus) e abraço a tristeza – lugar onde os homens vão ter quando crescem...
Nesse ponto, penso que, sendo um Gomes (o que me orgulha ao limite da insânia), não deixo de ser um Buendía, tanto quanto venho fazendo e sendo pela vida, desde que a literatura me abriu as portas que a ilusão fugidia fechara.
Aqui e então, onde o sal da água bate na rocha arranhando a existência sem modificar a marcha da vivência, percebi a valência de viver na grandeza dos que prepararam as metáforas vida afora (Cervantes, Shakespeare, Gabo...), chamando à praça dos dias a magia de ser, sem desconhecer que ‘nenhum canto é maior que a vida de qualquer pessoa’.
Vivi, então, para ver a face cruel da existência se erguer no mesmo céu que luziu à sombra da (estátua da) Liberdade, para regozijo de homens sem qualidade bastante para merecer a luz da esperança. Homens minúsculos, aprisionados na própria ignorância e viventes em sua ilha de solidão bilionária.
A América do Norte, por assim dizer e pelo voto de seus filhos, traiu a América e seu ideário de liberdade, se curvando ao grande capital em sua nova revolução industrial (plataformas que acomodam as ‘big techs’), onde a crise do grande capital (hoje atrás da China) precisou colocar seus mastins históricos (a cadela fascista) na rua à cata de sangue.
De tudo que vi recentemente, deveras, nada me impressionou mais que a ‘normalização’ de um sieg heil tirado em pleno Capitólio – então um símbolo de liberdade que não resistiu ao contraponto fascista dos interesses comerciais dessa nova onda capitalista.
A história não poderia ser esquecida a ponto de gente que bem a conhece (professores universitários dentre estes) não se indignarem com a situação mundial que espalha o terror em nome do interesse comercial – há um Bin Laden em cada big tech e este novo terrorismo não possui sequer um arcabouço ideológico a alimentar sua diminuta fantasia fálica.
Sim, o terror está definitiva e maledicentemente instaurado pela veia democrática, naquilo que os estadunidenses fizeram uma opção desta natureza – a mesma que, em 2018, nos levou ao escrutínio em favor daquele que cospe em estátuas de torturados, ao tempo em que apologiza torturadores.
Então e assim, no evento de posse do presidente estadunidense, seu apoiador (investidor) maior tira da cartola um sieg heil e quase ninguém (para não dizer ninguém) se levanta, reagindo em nome e por resgate histórico – imagino que Abraham Lincoln tenha revirado em seu caixão.
Nesse preciso momento, a outrora apelidada ‘terra da liberdade’ se curvou ao que, de fato, sempre foi um gigantesco entreposto comercial onde a mais-valia se abastece na ignorância e nas ilusões de alquilé, enfeitiçada no neon das multicores que o ‘brilho de aluguel’ fez amanhecer sobre as quimeras vencidas, enquanto o medo diz bom dia!
Tudo isso em nome de um historicamente engendrado ‘inimigo invisível’, a mãe de toda mentira que o grande capital vem contando há séculos em favor dos interesses financeiros de seus bilionários de estimação – aqueles, na mão de quem, estamos sempre a nos alimentar de migalhas...
Essa metamorfose capitalista encontrou eficiente contraponto na crescente imbecilização do cidadão médio estadunidense, que não pode nem deve ser parâmetro a nós outros, herdeiros de gente muito maior feito Simón Bolívar e Ernesto Guevara. Somos, sim, distintos. Há quem, por ignorância, desconheça a história e seus filigranas – o que não autoriza relativizar as diferenças.
Sim, bem sei que alguns (muitos) hão de gritar meu desconforto com a América do Norte. Ele existe, é fato, mas não impede o conhecimento histórico de alicerçar a valência de minhas vivências, notadamente quando os pilgrims estão a negar o maior de todos os seus – Abraham Lincoln.
Se tem alguma coisa que me fascina na terra do tio Sam, para além de sua maravilhosa produção literária (Edgar Allan Poe, Fitzgerald, Fante, Hemingway, Ferlinghetti, Eliot, Steinbeck, Sylvia Plath, Chandler, Hammett...) e de seus extraordinários cinema e teatro (Broadway baby, Broadway), é Abraham Lincoln.
Imagino esse cara agora, confrontando a sua história (que lhe custou a morte pela mão de um assassino conservador) com a história que estão a escrever com o sangue de seus descendentes.
Sim, eu sei, você sabe e eles tanto quanto não desconhecem: há outros e tantos problemas a se levar em conta na equação. Foi essa a justificativa de que o establishment, historicamente, se valeu.
O que eu não consigo desligar, por segundos, ainda que seja para ter um convívio mínimo com os então conhecidos de direita, é o custo das frases feitas e o seu contraponto histórico. Assim, se verdade é que necessitamos de uma correção de prumos, menos verdade não é que a nau não pode seguir mitigando direitos e solapando minorias. A história já mostrou o custo disso.
Seguiremos a caminho do holocausto?
Tristes trópicos. Saudade, Pai!
João dos Santos Gomes Filho, advogado

