O ano era 1958 quando Maysa, cantora e compositora, escreveu “Meu mundo caiu”, música que abria o disco “Convite para Ouvir Maysa nº 2”. “Meu mundo caiu e me fez ficar assim” está logo no início da letra, que versa sobre o desamor. Mais de seis décadas depois, a frase se encaixa num contexto totalmente diferente – e inimaginável na época em que a neta do Barão de Monjardim brilhou: o mundo da internet que caiu em muitos lugares, na última terça-feira, e fizeram a comunidade ficar assim, em polvorosa.

Portais de notícias como os da BBC, The New York Times e Financial Times, os serviços de streaming Spotify, Twitch, Hulu e HBO Max, os serviços de pagamentos Paypal e Stripe, a gigante Amazon e o fórum de mensagens Reddit foram alguns dos afetados. No Reino Unido, até a página oficial do governo saiu do ar, causando transtornos para quem queria agendar horários para vacinação contra a Covid-19. Juntos, esses serviços online recebem milhões de visitantes por dia e pararam por quase uma hora, após um erro de configuração nos sistemas da Fastly, empresa fornecedora de infraestrutura para a internet, sediada no Vale do Silício, nos Estados Unidos.

A Fastly opera uma rede de distribuição de conteúdo (CDN, na sigla em inglês), idealizada para reduzir o tempo necessário ao baixar páginas da web e arquivos maiores, como os de música e vídeo. Os dados das empresas ficam armazenados em servidores espalhados pelo mundo, reduzindo o tráfego da internet ao manter o conteúdo em locais mais próximos dos smartphones e computadores dos consumidores. Assim, quando alguém acessa um site ou aplicativo, a proximidade geográfica com os servidores reduz o tempo de espera para se carregar aquela informação. Interrupções pontuais no carregamento de sites e aplicativos até costumam ser frequentes, mas geralmente não duram muito. “Essas redes de entrega tem backups em vários servidores espalhados pelo mundo, então geralmente quando há algum problema ele é rapidamente contornado, com o direcionamento para outro servidor, e o usuário nem percebe o problema'', explica o consultor em tecnologia e segurança da informação, Renato Cabral.

No entanto, a Fastly oferece uma espécie de “faixa de apoio” entre os sites ou aplicativos e os clientes que os acessam. Ou seja, quando ela cai, o acesso pode ser bloqueado totalmente. E foi exatamente o que aconteceu, causando uma espécie de aperitivo de “caos” mundial. Ao tentar acessar os sites, os usuários encontravam o erro “503”, um código que informa um problema temporário, comum em páginas em atualização ou em construção. “Os motivos não foram detalhados pela empresa, só alegaram problemas de configuração, mas pode ser alguma falha na infraestrutura, no servidor, excesso de carga devido à mais acessos do que ele suporta ou até algum ataque hacker”, avalia Cabral. De acordo com o site da Fastly, além das Américas, Europa, Ásia e África também sofreram com a interrupção. No Brasil, as cidades mais afetadas foram Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba.

No Twitter, a queda logo foi parar nos trend topics, com gente até evocando aí um sinal do “fim dos tempos”. E teve gente que realmente se sentiu à deriva. Ligada no Spotify desde cedo, todos os dias, a jornalista Carla Silveira conta que primeiro imaginou um problema na conexão ou no celular. “Cheguei a reiniciar o telefone, o modem do wifi, e nada adiantava. Depois fiquei sabendo da queda, que era um problema no aplicativo. Sempre gosto de começar o dia ouvindo alguns podcasts de notícias, tive que apelar para a televisão naquele dia”, recorda, revelando que a dependência digital às vezes nem é percebida no cotidiano. “A presença da tecnologia se tornou tão corriqueira no dia a dia que a gente só se dá conta dessa dependência quando ela fica inacessível. E aí dá uma sensação estranha, como se faltasse algo essencial e a gente não soubesse como agir offline, o que fazer frente àquilo”, resume Silveira.

Na quarta-feira, foi a vez do WhatsApp, Facebook e Instagram ficarem instáveis por quase uma hora, no início da noite. E em dezembro do ano passado, vários serviços do Google – Gmail, Youtube, Google Maps e o serviço de armazenamento em nuvem Google Drive – ficaram fora do ar por 45 minutos, complicando a vida de quem depende dessas soluções para se comunicar, locomover, organizar a agenda ou trabalhar online. “Já éramos uma sociedade totalmente dependente da tecnologia e isso se aprofundou durante a pandemia. Interrupções nos serviços mostram que estamos mal acostumados e tendem até a provocar crises de ansiedade”, opina a antropóloga Maria Cristina Neves, que conta ainda como as percepções se alteraram profundamente com o passar das décadas e a imersão na tecnologia. “Nos anos 80, a gente ligava em uma central, falava com uma pessoa, pedia um táxi, passava o endereço e esperava 10, 15, às vezes até 20 minutos e tudo bem. Hoje, pedimos um Uber em um aparelho que está na palma da mão e, quando vemos que vai demorar 5 minutos, já achamos um absurdo, reclamamos. Chega a ser infantil agir assim, mas a tecnologia transformou nossas vidas, nos imprimiu uma necessidade de agilidade, uma pressa, e o desafio é não ficar refém disso”, aponta Neves, sugerindo que se realce o poder das ferramentas digitais em facilitar o acesso à cultura, educação e entretenimento. “Tudo tem ônus e bônus. A conexão que te leva a visitar um museu do outro lado do mundo também te aproxima de um golpista que pode roubar os dados do seu cartão de crédito. O que agiliza e facilita milhões de coisas, também gera ansiedade. Tem que saber se equilibrar e se proteger nessa espécie de selva”, alerta.

E como seria o mundo offline em pleno 2021? É como pensar em uma viagem relativamente curta no tempo, para os anos 1980, ou até a metade dos anos 1990 – mas que parece uma era incrivelmente distante. Rádio e televisão voltariam a ser as únicas fontes das notícias em tempo real. Os jornais impressos e as revistas retomariam a força pré-internet, com altas tiragens. Sem os serviços de streaming de música e vídeo, as videolocadoras reviveriam os tempos de glória nos fins de semana, assim como as lojas de CDs e DVDs, além das livrarias físicas. Adeus home office: o modelo de teletrabalho que salvou muita gente – e empresas – durante a pandemia ficaria inviável, já que o computador voltaria a ter a aura de “máquina de escrever” mais prática. E dá-lhe trabalho para os Correios, que veriam as cartas voltarem a cruzar distâncias de dias em substituição aos instantâneos e-mails. O celular teria de ser usado para algo bastante fora de moda – fazer e receber ligações. Até funcionaria como câmera fotográfica, mas, para compartilhar com os amigos, os pontos de revelação em uma hora talvez voltassem a ser bastante frequentados. Sem o e-commerce, as gigantes lojas de departamentos provavelmente investiriam na atração dos mais jovens – quem sabe a Mesbla não reabriria no calçadão da Avenida Paraná. As filas das agências bancárias teriam de volta os milhares de adeptos das transações financeiras por meio de aplicativos e os bancos digitais estariam sepultados. Mas talvez os maiores impactos seriam sentidos no mercado de trabalho e na economia de países mais ricos e conectados. A Coreia do Sul, por exemplo, perderia quase metade do PIB. Já a Califórnia, onde mais de 70% das empresas estão ligadas ao setor online, teria de encarar uma dura realidade. Embora profissões ligadas à tecnologia desaparecessem, funções do “passado” retomariam fôlego. É possível que os vendedores de enciclopédias voltassem a bater na sua porta, já que a praticidade do Google estaria inacessível. E até as antiquadas listas telefônicas e páginas amarelas ressurgiriam em nosso cotidiano.

“Primeiro é preciso lembrar que vivemos em uma bolha, afinal, uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet, então essa rotina que pra nós é ‘vintage’, é a realidade atual para eles. Mas para quem está conectado, pensar numa realidade offline é até utópico com o olhar de hoje. Às vezes a gente se pega pensando ‘como vivíamos sem isso’, ao comentar sobre uma tecnologia. É um exercício divertido de se fazer, mas penso que jamais retornaremos ao que vivemos no passado, a menos que tenhamos uma grande catástrofe mundial”, avalia Neves, apontando as ironias trazidas com a tecnologia. “Esses avanços fizeram com que tarefas demoradas do passado fossem realizadas com rapidez e nos dessem mais tempo livre. Aí pegamos esse tempo livre e ocupamos com outra infinidade de coisas que agora nos deixam sem tempo. Vivemos sempre nos complicando”, brinca a antropóloga.

E, se depender das empresas de tecnologia, definitivamente não há riscos de uma vida offline. “Segurança e estabilidade estão sempre em primeiro lugar, porque alguns minutos com sistemas fora do ar representam prejuízos gigantescos. É um efeito em cascata que pode até quebrar uma empresa, por isso a responsabilidade é muito grande”, afirma Cabral. No entanto, ele dá algumas dicas para quem costuma deixar todos os conteúdos na nuvem. “Dependendo do material, ter um backup pessoal é uma possibilidade a se considerar, principalmente se for algo indispensável para o trabalho, por exemplo. Acho muito improvável que uma empresa vá perder esse conteúdo do usuário, mas ele pode precisar acessá-lo em um momento de instabilidade, como o que vimos essa semana. Então a opção depende do perfil e da urgência de cada um”, sugere o consultor em tecnologia. Ou seja, na hora do aperto, cada um que busque sua alternativa. É realmente como disse Maysa no final da canção: “se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar”.