A espada rasga os ares com a verborreia facínora, proporcional aos moinhos de vento que se vão levantando como gigantes por este país afora. Do comunismo, ao globalismo, das vacinas aos governadores, do STF à Anvisa, todos são inimigos e devem por isso ser combatidos com a galhardia de um cavaleiro andante, em busca do elo perdido que o deixou suspenso entre a razão e a insanidade. Até o pobre Rocinante tupiniquim, atordoado entre as distâncias percorridas e os objetivos alucinantes, perde o trote e dá sinais de um cansaço inevitável. O final libertador das loucuras do seu amo está próximo. Porém, o intrépido guerreiro, “cavaleiro de triste figura”, montado no equídeo bambo no poder que se esvai entre os dedos, ensaia os seus últimos atos capazes de enrobustecer Cervantes.

Quiséramos, os leitores deste trágico-cômico romance infelizmente repleto de realismo histórico, que os Sanchos Pança, companheiros do alucinado sinistro cavaleiro, possuíssem ao menos o feeling do fiel escudeiro de Dom Quixote de la Mancha! “ Que gigantes? - Disse Sancho Pança - Aqueles que ali vês - respondeu seu amo -, de longos braços, que alguns chegam a tê-los de quase duas léguas - Veja vossa mercê - respondeu Sancho - que aqueles que ali aparecem não são gigantes, e sim moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as asas, que, empurradas pelo vento, fazem rodar a pedra do moinho”! Como o patético frenesim negacionista que cobre este país, reclama a presença de um Sancho que emita faíscas de bom senso e quiçá, ténue discernimento!

As batalhas travadas pelo quixote minúsculo da la Mancha do planalto central são infinitamente mais nefastas do que as narradas no célebre romance do século XVI. Sua espada ferindo os ares, ameaça de morte adultos e crianças, derruba matas, envenena agricultura, rouba a terra dos indígenas, desmonta conselhos e órgãos governamentais de fiscalização, envenena instituições democráticas e foge dos debates reais da sociedade do seu país. O seu alfanje enferrujado mata uma nação que embora gigante, não é um mero moinho de vento!

“O destino vai guiando as nossas coisas melhor do que pudéramos desejar; pois vê lá, amigo Sancho Pança, aqueles trinta ou pouco mais desaforados gigantes, com os quais penso travar batalha e tirar de todos a vida, com cujos despojos começaremos a enriquecer, pois esta é boa guerra, e é grande serviço de Deus varrer tão má semente da face da terra”. Tal como lá, há cá também um desejo mesquinho e perverso de submeter à vontade de um deus, patologias esquizofrênicas de fuga da realidade e incapacidade de elaborar conceitos e teorias que busquem soluções adequadas. Um soldado montado na efemeridade, que guerreia contra imunizantes, ao invés de fazê-lo contra o vírus, é bem mais perigoso que um pobre Quixote cavalgando o seu desnutrido cavalo!

Poderia este fantasmagórico beligerante alcançar os seus objetivos fatais sem a subserviência cega dos auxiliares de plantão? De fato, o Brasil ficaria grato se neste complô contra a vida, os atuais Sanchos Pança montados em decrépitos jumentos, assinassem a sentença do original escudeiro: “Esse meu mestre, por mil sinais, foi visto como um lunático, e também eu não fiquei para trás, pois sou mais pateta que ele, já que o sigo e o sirvo”! Contudo, os serviçais que em troca de migalhas ou fascinados pelo poder não interrompem os atos da loucura, recusando-se a serem deles cúmplices, ficarão registrados na história como personagens patéticos e corresponsáveis pelas consequências nefastas.

O cavaleiro que dorme de armadura e espada em riste, sempre pronto a enfrentar os inimigos, eleitos diariamente, consome as energias com um belicismo estéril e expõe a sacralidade republicana do seu cargo. Ao contrário da consagrada obra espanhola, o nosso dom quixote é um perigo à solta, ao se encarnar como salvador de uma epistemologia fake e hipócrita, arruinando a cultura e a educação de um povo. Pelas estradas deste país medievalizado, a figura de um alucinado esbravejando contra a ciência, as universidades, os meios de comunicação e a própria democracia só chama a atenção por uma razão: não é levado a sério o suficiente para ser incomodado!

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese de Londrina

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