No início de julho, uma operação policial prendeu o fundador da rede varejista Ricardo Eletro, sua filha e o diretor financeiro da empresa. De acordo com as reportagens sobre o caso, a companhia está em recuperação extrajudicial e deve aproximadamente R$ 387 milhões de ICMS à Receita Estadual de Minas Gerais. O empresário e os demais detidos estariam sendo investigados pela suposta prática do crime de apropriação indébita de ICMS.

A justificada preocupação que se instaura entre os empresários é que o fato abra precedente e estimule outras prisões, considerando especialmente a crise econômica provocada pela Covid-19. Não se pode equiparar o devedor ao sonegador, especialmente no momento delicado que a economia mundial está atravessando. O atual contexto aumenta o risco de o empresariado incidir neste tipo de comportamento, tendo em vista as dificuldades de se honrar os compromissos assumidos, dentre eles os tributários.

Para entender como chegamos nesta situação, vale um breve histórico. Em agosto de 2018, um julgamento do STJ reconheceu que se configura crime de apropriação indébita de ICMS quando o tributo é cobrado do consumidor na venda da mercadoria, mas não é repassado ao Estado. Pouco mais de um ano depois, em dezembro do ano passado, o STF fixou a seguinte tese: “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei no 8.137/1990”.

Traduzindo o juridiquês, os empresários e comerciantes que deixarem de repassar à Receita o ICMS pago pelos consumidores podem estar cometendo um crime. O tribunal criou um novo delito a despeito da Constituição Federal, que é cristalina ao afirmar que somente o Congresso pode legislar sobre novos tipos penais. Inicialmente, cumpre esclarecer que a tese fixada pelo STF não se aplica automaticamente a casos análogos, uma vez que não dispõe de repercussão geral referindo-se apenas ao caso concreto discutido na ocasião. Assim, entendido diversamente e não havendo análise do caso concreto, há flagrante desrespeito ao princípio da presunção de inocência.

Ora, o mero inadimplemento de uma obrigação tributária jamais poderá configurar um crime, até mesmo porque o Direito Penal não pode ser utilizado como instrumento de cobrança ou coação, haja vista sua natureza de último recurso. Para a criminalização do inadimplemento do ICMS, é necessário que a ação seja fraudulenta e dolosa. Ademais, o STF exige que o não recolhimento do ICMS aos cofres públicos seja feito de forma contumaz, ou seja, rotineira. Assim, para evitar a aplicação arbitrária do referido entendimento é necessário que o contribuinte mantenha sua escrituração contábil e fiscal em dia para evidenciar a ausência de dolo em caso de eventual não recolhimento de tributos.

O combate à sonegação fiscal não pode justificar a criminalização generalizada, muito menos atentar contra as garantias do Estado Democrático de Direito. Deve-se lutar contra todo e qualquer tipo de criminalidade, mas acima de tudo, deve-se estar atento a esta abordagem caótica, marcada por anseios midiáticos e por um discurso de terror — artifícios que implicam necessariamente em um retrocesso histórico das conquistas democráticas da nossa sociedade.

Janaina Braga Norte é advogada, sócia do escritório Neto Martins Palla, professora de Direito Penal e Processo Penal da Pontifícia Universidade Católica -PUC/PR, coordenadora da Pós-graduação Lato Sensu em Direito Penal e Processual Penal Econômico na Pontifícia Universidade Católica - PUC/PR, campus Londrina