A democracia é certamente a maior conquista da modernidade. É bom lembrar que a história foi dominada por formas autoritárias de poder, muitas vezes, transvestidas de vontade divina, outras como fruto de uma linhagem “superior” de indivíduos que se revestiam do direito de impor suas vontades, crenças e visões de mundo sobre a maioria da população. A democracia veio destruir esses dogmas e instituiu a soberania popular como forma de organização da vida em sociedade.

Com a instituição da democracia, as populações conquistaram o direito de definir o próprio destino e passaram a se responsabilizar pelos rumos da sociedade, sustentadas por um imperativo legal que se propõe a viabilizar uma convivência pacífica entre pensamentos e valores díspares, entendendo-se o conflito como legítimo e necessário. É por meio da aceitação da pluralidade de ideias e ideais que se fundamenta o sistema democrático, os oponentes apresentam suas propostas e se monitoram mutuamente, obstaculizando possíveis abusos e iniquidades de ambos os lados.

A democracia é sempre inacabada, o que obriga a um permanente aperfeiçoamento, aproximando a população das esferas de poder constituído. Possíveis falhas no processo democrático devem ser corrigidas com mais democracia.

Como aponta Marilena Chauí, a democracia diferencia-se dos demais regimes políticos, em três pontos fundamentais: 1) é a única baseada na criação e conservação de direitos; 2) é a única que considera o conflito como legítimo e necessário; 3) é a única que afirma que a soberania é popular.

Livitsky e Ziblatt na obra “Como as democracias Morrem” apontam os principais sinais de colapso dos sistemas democráticos no mundo, são eles: 1) Autoritarismo dos políticos, atestado pela incapacidade de conviver com regras e normas pré-estabelecidas e o desejo em aniquilar posições contrárias às suas; 2) Políticas de enfraquecimento das instituições democráticas, como:

Parlamento, Judiciário, partidos políticos e Ministério Público. 3) Enfraquecimento das normas democráticas, aproveitando-se de brechas da lei para impor comportamentos autoritários. 4) Polarização política que não aceita a existência de pontos de vista divergentes. A oposição é percebida como representação do mal e objeto a ser aniquilado a qualquer preço. 5) Contestação do sistema eleitoral e das regras democráticas, questionando-se os resultados das urnas e a idoneidade de todo o processo. Qualquer semelhança com o Brasil atual não é mera coincidência, é ameaça concreta.

Os últimos trinta anos contabilizaram o mais longo período democrático da história brasileira, marcado pela Constituição de 1988 responsável pelo primeiro grande pacto social com ampla participação da sociedade. Passamos a ter liberdade de opinião, a imprensa superou os grilhões da censura e se tornou importante vigilante das instituições. Elegemos nossos representantes a partir de uma pluralidade de alternativas e avaliação periódica. Contamos com poderes autônomos, descentralizados, que se auto monitoram para nos proteger da ameaça que o historiador britânico John Dalberg-Acton alertava no início do século XX: "O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”.

As conquistas não foram poucas! Mas apesar de todos os avanços, a ordem democrática é desprezada por parte significativa da população, que prefere o autoritarismo à liberdade, mitos e salvadores da pátria à soberania popular, pensamento único à pluralidade e liberdade de expressão, e privilégios para poucos à inclusão de todos. As constantes ameaças de ruptura institucional patrocinadas pelo próprio Presidente da República, são aclamadas com euforia, o que confirma a tese de que a história é feita de avanços, mas também de retrocessos sempre que se desprezam as lições do passado.

Miguel Luzio Santos, professor de Socioeconomia da UEL (Universidade Estadual de Londrina)

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