Cada vez que penso nos holocaustos me vem na memoria a frase lapidar de Hannah Arendt: “Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo, e as melhores a esperança”. Quem poderia imaginar que uma mulher como Hannah Arendt conseguirá conquistar um espaço tão especial no mundo acadêmico, intelectual e social. Suas raízes e sua estrutura social poderiam ter condenado ela ao esquecimento, ou aquilo que é pior, ao aniquilamento. Arendt é um sinal visível de que não podemos nos conformar ou aceder a posturas inúteis como pessoas que não queremos sair do nosso espaço de conforto e imaturidade espiritual, psicológica e humana.

Hannah Arendt, sendo judia, entendeu na sua espiritualidade que para falar em esperança temos que nos esforçar radicalmente numa mudança de vida. A Quaresma é um tempo para perceber a grandeza da nossa superação interior e sobre tudo para mudar desde o mais profundo do nosso ser; aquele lugar escondido onde Deus fala com cada um de nós. Muitos de nós dizemos “convertidos” quando na verdade vivemos numa zona de conforto. Nunca procuramos conversão nenhuma e sim um verniz de jejum, esmola e um que outro arrependimento superficial e mal feito.

Cada ano nos esforçamos mas não mudamos, pelo contrário voltamos a ser os mesmos de antes. Nós dizemos que somos pessoas novas mas os nossos vícios sustentam uma fé anacrônica e ateológica. O papa Francisco escreveu para todos nós na sua mensagem quaresmal 2023: “O caminho ascético quaresmal e, de modo semelhante, o sinodal, têm como meta uma transfiguração, pessoal e eclesial. Uma transformação que, em ambos os casos, encontra o seu modelo na de Jesus e realiza-se pela graça do seu mistério pascal. Para que, neste ano, se possa realizar em nós tal transfiguração, quero propor duas `veredas´ que é necessário percorrer para subir juntamente com Jesus e chegar com Ele à meta”.

A ascese nos ajuda a ascender num espaço que não é mais o mesmo. Por isso a metanoia, que significa mudança, é uma verdadeira revolução inteirar e exterior nas nossas vidas. Quaresma é não permitir que formalidades farisaicas assumam em nos posturas que não correspondem a uma mudança radical. Passar da morte para a vida. No nosso interior encontra-se a grandeza do nosso ser integral que necessariamente passará por nosso exterior. Os que temos lepra seremos curados, os que somos cegos enxergaremos com clareza e os que somos mudos proclamemos as grandezas do Senhor.

Depois de uma quaresma vivida no Senhor teremos uma atitude transformadora, renovada e livre. Precisamente para que os nossos compromissos de mudança e transformação tenham valor somos chamados a iniciarmos este caminho quaresmal na abstinência, no jejum e na caridade. Não façamos abstinência nem jejum de sutilezas gastronômicas ou etílicas sem descobrir a verdadeira proporção do jejum que leva a prática da justiça. Não façamos da esmola quaresmal um vazio dos nossos bolsos porque os centavos pesam; não mostremos para a nossa mão direita o que faz a esquerda. Tempo de graça para perdoar a quem nos ofendeu, para nos aproximarmos de quem estamos longe, tempo para não nos calarmos as verdades que a pleno sol teríamos que gritar sem violência e agressão.

Nesta Quaresma a fome brama nas ruas e nos palácios, a fome toma conta de pobres e ricos, a fome se espalha pela terra. Assim nos diz O Senhor: “ Dai-lhes vos mesmos de comer”. Somos chamados a viver para os nossos irmãos e com eles contribuir na construção do Reino dos céus aqui na terra. Uma quaresma capaz de nos conduzir a uma renovada experiência do amor que trará a Páscoa. Não podemos nos contentar com a chegada de um ovo vazio e de coelhos cintilantes. Olhemos para o túmulo vazio sim! Ele não está ali! Ele está no meio de nós! Vivo, oferecendo seu Corpo e Sangue que sacia toda fome. Então aí nós poderemos cumprir o seu mandato: Dai-lhes vós mesmos de comer.

Padre Rafael Solano, presbítero da Arquidiocese de Londrina

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