Como há 2000 anos... - Luiz Sallim Emed
PUBLICAÇÃO
sexta-feira, 07 de janeiro de 2000
Como há 2000 anos...
Luiz Sallim Emed
José vem à cidade grande para o parto de Maria e para uma vida nova. Mestre-de-obras, sonhou que bastaria seu ofício, carpinteiro, pois o importante é o trabalho, tão escasso nesses tempos. Sós na metrópole, foi difícil conseguir informações, pois as pessoas indiferentes e apressadas, de pouca prosa. Apenas uma orientou o endereço do parente na vila distante. Entre erros e acertos, chegou até o ponto de ônibus. Posteriormente, mais uma longa caminhada, penosa pelo avançado estado de gravidez.
Enfim chegaram. Casa pobre de muitas crianças e pouco espaço, a mesma situação nos vizinhos amigos, mas conseguiram pequeno quarto de fundos. Poucas horas mais tarde, Maria despertou das dores. Apesar do cansaço, sua beleza contrastava com aquele rude local. José aproximou-se, abraçou-se e com um beijo no seu ventre e disse: aqui está nosso rei. Confie!
Iniciaram o caminho de volta, interrompido a cada nova dor. Finalmente a maternidade indicada, mas uma placa na recepção: Não temos vaga. Conseguiram um novo endereço, mas também não foi atendida, pois não fizera o pré-natal e não havia vaga no berçário. Ao passar defronte à terceira maternidade, José tentou novamente, mas não atendiam pelo SUS. As dores eram mais frequentes, então, já na quinta maternidade, um alívio. Após entrevista e triagem, José conseguiu guia de atendimento, com dificuldade, pois não tinha referência e residia fora do município.
A espera era interminável, as contrações mais intensas, mas ainda há disposição de confortar outras grávidas e dar esperança e fé naquele corredor de ansiedades, angústias e histórias tristes. Em seguida, uma chamada: Maria filha de Ana. Com dificuldade, levantou-se, pés inchados, assim que iniciou seus passos mais ordens ríspidas: Rápido! É pra hoje! Ao entrar na sala de exame, parou para suportar outra forte contração e um comentário infeliz: Deixa de fricotes! Está muito manhosa. Perguntas rápidas e apenas as necessárias, demonstrando uma atitude essencialmente profissional, desprovida de qualquer afeto.
Ao exame de seu ventre o médico foi tomado por uma forte emoção e um sentimento diferente, estranho mesmo. Pensou em partilhar aquela sensação, mas reprimiu. Novamente volta o perfil frio e técnico, sem qualquer preocupação com as condições e o local de moradia. Falou: Não está na hora. Não é para hoje. Vá para casa. E não deu qualquer chance de perguntas.
Maria levantou-se sem ajuda, amparo, ou apoio para descer da mesa. Encontra o aflito José e resignados retornam. Parece um caminho novo, é noite, muitos enfeites natalinos, neon, muitas luzes nas árvores e residências, um espetáculo maravilhoso, brilho intenso que vai diminuindo à medida que se aproximam do bairro e apenas uma lâmpada fraca servia para iluminar aquele abafado e pequeno quarto. As dores são mais fortes e frequentes; suor, muito calor que aumentou ao sentir um líquido quente em suas vestes e pernas.
Maria lembrou sua prima e imaginou: é chegada a hora.
José sai em busca de ajuda, encontra a agente de saúde; em seguida, avisou a médica de família daquela comunidade, que deixou a ceia natalina com os filhos e prontamente dirige-se para o atendimento. Ao ver a paciente, indentificou-se: Eu sou Isabel, sua médica. Maria respondeu: Mesmo nome da minha prima. E inicia uma diálogo fraterno, perguntando sobre sua procedência, número de filhos, história familiar e faz outras abordagens para reassegurar a confiança em um momento crítico, rico em medo e ansiedades, que é o parto.
A doutora Isabel aprendeu que palavras de cortesia e a postura médica são medidas terapêuticas que promovem tranquilidade e fortalecem a relação médico-paciente. Ao tentar utilizar dessa estratégia e levar essa energia, pelo contrário, recebia de Maria reflexos de luz de um forte brilho, como se seus raios penetrassem pela primeira vez em uma gruta escura. Essa era a luminosidade daquele quarto. Deu-se o nascimento da criança, semelhante a uma fonte de água que brota natural, cristalina, forte, que dá vida e onde todos devemos beber.
A doutora Isabel ao segurar o pequeno ser sentiu-se maravilhada e confusa; maravilhada pela sensação de paz, de esperança e amor transmitidos pela proximidade daquela mãe e de seu rebento; confusa porque o choro daquele bebê penetrava em sua alma com um grito de alerta, um pedido de ajuda, não para si, mas para a humanidade atualmente tão em desacordo com estes sentimentos. Quantas crianças como esta morrem todos os dias pela miséria, pela violência, pela intolerância dos que poderiam ajudar e não o fazem?
Ao entregar o recém-nascido nos braços de sua mãe, a jovem doutora teve a certeza de que sua vida, a partir de então, teria um significado maior, e sentiu-se responsável pela semente de esperança que ora despontava em seu coração. Prometeu àquela singela família que esta semente seria cuidada e multiplicada a todos os seus colegas, numa corrente de amor ao próximo, de solidariedade e de respeito aqueles que sofrem a dor física e moral das injustiças que a vida lhes impõem.
Ao despedir-se, recebeu um agradecimento em nome de todas as Marias. José beijou suas mãos e ofereceu duas pombas como presente, que representam a paz que deve reinar entre todos os homens de boa vontade. Ao sair, viu uma estrela guia, lembrou-se que era Natal e agradeceu a Deus o privilégio de ter sido a escolhida entre as mulheres. Agradeceu também por ser médica e ser o instrumento para o alívio da dor e do sofrimento de seus semelhantes. Pediu para continuar exercendo a profissão dentro dos princípios éticos e humanitários.
Que no próximo milênio, as mensagens de esperanças sejam reais e que a dureza dos últimos 2000 anos seja aliviada e a paz permaneça pela eternidade.
Que todos os médicos tenham o espírito, o compromisso e a atitude da jovem doutora para o próximo milênio. Aos gestores, a lucidez e a criatividade para a promoção da saúde, acabando com as injustiças, e que a história de dificuldades não se repita como há dois mil anos.
- LUIZ SALLIM EMED é médico e professor em Curitiba