Imagem ilustrativa da imagem CIDADANIA - 'Constituição brasileira é uma das melhores do mundo'
| Foto: Gustavo Carneiro



Na esteira da insatisfação popular com o preço dos combustíveis, que culminou na paralisação dos caminhoneiros e na correria aos postos e aos supermercados, pôde-se constatar em vários pontos de bloqueio nas estradas a vontade de muita gente em reviver os tempos de comando dos militares. Não faltaram áudios extremamente duvidosos, difundidos por meio de aplicativos de mensagens instantâneas, sugerindo um "túnel do tempo" para 1964. Links com notícias falsas acaloraram as discussões e encorajaram os que estavam calados.

No ano em que a Constituição Federal completa três décadas, o clima não poderia ser mais conveniente para se debater os efeitos do texto da chamada "Constituição Cidadã" na vida dos brasileiros. A FOLHA conversou com Luciano Bernart, presidente da ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional). A entidade organizou a 13ª edição do Simpósio Nacional de Direito Constitucional, que termina neste sábado (2), em Curitiba, e conta com a participação, inclusive, de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).

"No sentido de garantir direitos sociais, individuais, a Constituição de 1988 traça um panorama bem claro, muitas vezes até muito benéfico da sociedade", destaca Bernart, que é graduado em Direito pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Paraná, mestre em Direito Econômico e Social, especialista em Direito Processual Tributário e Doutor em Direito Tributário pela Ludwig-Maximilians-Universität, de Munique, na Alemanha.

Hoje em dia, no âmbito do Judiciário, recai uma certa desconfiança sobre o STF (Supremo Tribunal Federal). A reputação do Legislativo já não é boa há mais tempo e vemos o Executivo cada vez mais preso ao poder econômico. O futuro dos poderes depende mais de reformas nas leis ou do fortalecimento de órgãos de fiscalização?
Eu acredito que não existe uma fórmula mágica. Acredito que a alteração da legislação em alguns aspectos pode ser benéfica, mas acredito que não resolve. Porque quem cumpre as leis são as pessoas, nós verificamos que as pessoas, até por questões pessoas, políticas ou outros interesses, agem em conformidade com um contexto. Nós precisamos trabalhar com a legislação, mas também com a formação destas pessoas, um pouco com a nossa cultura.

Por exemplo, essas manifestações, que tinham, de maneira geral, o apoio popular. Mas nós vemos que alguns agem de maneira contrária, como é o caso dessas elevações de preços. Ou seja, no momento em que as pessoas mais precisam que você mantenha os preços alguns tentam ganhar mais dinheiro visando o individual e não o coletivo. Uma alteração cultural seria apropriada, mas como ela vai ocorrer é muito difícil de dizer agora, mas passaria por um conjunto de medidas.

Em seu entendimento, particularmente no âmbito do Direito Constitucional Brasileiro, podemos considerar que no Brasil, desde a promulgação da Constituição de 1988 até os dias de hoje, há um isolamento intencional do que a Carta Magna propõe frente a realidade?
Acho que isso não foi intencional. Acredito que a Constituinte de 1988 traçou um objetivo que o Estado deveria alcançar. Já tive a oportunidade de analisar as constituições de outros países e estudar com outros professores que fizeram isso e a sensação que se tem é que a nossa é uma das melhores do mundo. No sentido de garantir direitos sociais, individuais, ela traça um panorama bem claro, muitas vezes até muito benéfico da sociedade.

Agora, o problema está em relação à efetividade disso. É por isso que eu digo que alteração na legislação às vezes não resolve o problema. Às vezes por ser algo muito antigo, como a questão da corrupção, um mandato não resolve o problema, o político que disser isso está mentindo. Mas eu creio que o constituinte não pretendia isso. O que há na prática é uma falta de vontade, capacidade e competência, ou impossibilidade mesmo.

Os Estados estão com um deficit financeiro muito grande e aí nós percebemos que tem algumas coisas que eles não conseguem mesmo, quiçá pagar salários que, ao longo do tempo, em alguns casos, não todos, houve até um benefício muito elevado para alguns servidores, para uma determinada classe de servidores. Isso faz também com que esse deficit seja aumentado. Então eu penso que é um conjunto de fatores que impede, internos ou externos, aí tem que analisar caso a caso.

Mobilizações populares colocam em xeque a credibilidade das instituições?
Entendo que qualquer mobilização pacífica e que não impeça o direito dos outros de ir e vir é legítima. É uma situação que ocorre no nosso estado democrático. Eu acho que as reivindicações não colocam em xeque as instituições. Ao contrário, demonstram uma certa insatisfação com algumas instituições. Estamos vivendo um momento muito difícil economicamente e a população demonstra essa insatisfação, principalmente com o Poder Executivo.

Todo o processo social tem construções, momentos de tensão e você consegue verificar exatamente se essas instituições são atuantes ou são fortes exatamente nesses momentos. Enquanto está tudo tranquilo as instituições navegam com o vento.

É claro que não desejo que ocorra o que está acontecendo. É muito difícil verificar as pessoas formando filas de quatro horas para abastecer e isso não é bom. Mas se for para uma melhoria da sociedade então que esses momentos sejam passageiros. Acho que não coloca em xeque, mas testa no sentido de fortalecer, além disso os movimentos são protegidos pela Constituição.

Estamos vivendo um momento em que alguns grupos pedem o retorno da ditadura. Qual a sua avaliação sobre isso?
Posso dizer que essas pessoas estão equivocadas. A volta de uma ditadura militar seria um retrocesso. O País não precisa disso. Precisa de uma democracia forte. É necessário aprimorar a nossa democracia. Não que eu tenha nada contra o Exército ou as Forças Armadas, de maneira nenhuma. Eu acredito que as Forças Armadas são importantes na manutenção da democracia e da justiça, mas eu não acredito que resolveria o problema, acho que agravaria.

Assim que os militares tomassem o poder talvez algumas questões iniciais poderiam ser resolvidas, mas acabaria também a possibilidade de fiscalização. Eles aceitariam ser fiscalizados? Como faríamos para decidir a alternância de poder, a escolha popular? Falo por todos os membros da Academia. Somos completamente contra intervenção militar. Por mais que as instituições estejam abaladas neste momento, elas ainda estão exercendo o seu papel, algumas com dificuldades, mas temos que melhorar. Acho que em poucos casos a intervenção pode trazer benefícios.

Qual a sua opinião sobre a suspensão da tramitação de PECs (Propostas de Emendas Constitucionais) durante a intervenção federal no Rio de Janeiro? A quem interessa a lentidão na tramitação, por exemplo, da PEC do foro privilegiado?
A suspensão da tramitação de PECs precisa ser instrumental. Deve-se fazer um questionamento: por qual motivo houve a suspensão? Porque o Legislativo estaria preocupado em resolver o problema, se isso seria efetivo ou porque não teria competência? Agora eu não consigo dizer quem foi beneficiado, mas sim quem foi prejudicado. Com certeza, a sociedade brasileira.

A ABDConst é uma das instituições mais respeitadas no meio jurídico. Qual é a principal contribuição de simpósios como o deste ano?
A função do simpósio é justamente levantar questões para que a sociedade toda possa discutir qual é, efetivamente, o futuro das nossas instituições. Eu entendo que uma nação e um país é forte na medida em que a sociedade é forte e a sociedade se expressa através das suas instituições, que são os agrupamentos de pessoas dentro das sociedade.

Mais alguma consideração?
A questão da ilegalidade e da incompetência. Temos que tratar essas duas questões de forma concomitante. Muita gente acha que a corrupção é a única forma de desvio, mas não é. Corrupção e incompetência destroem o patrimônio público. Isso é algo que deve ser rechaçado de início nas instituições. É claro que erros acontecem, mas nós temos que criar processos e procedimentos que não resultem em burocracias, porque isso também afeta e não deixa de ser incompetência. Só depois é que podemos desenvolver as instituições, é um processo difícil, mas eu tenho fé e esperança que nós vamos passar por isso.