Para Felippe Angeli, organizar as penas de acordo com a gravidade dos delitos é fundamental para reverter situação caótica
Para Felippe Angeli, organizar as penas de acordo com a gravidade dos delitos é fundamental para reverter situação caótica | Foto: Divulgação



Em 2017, o Brasil teve 61 mil mortes violentas, 70% delas cometidas com uso de arma de fogo. O ano passado registrou 49 mil casos de estupro e uma mulher assassinada a cada duas horas. A taxa de homicídios de policiais chegou a 106 casos para cada 100 mil trabalhadores da categoria. Os números mostrados pelo Instituto Sou da Paz são evidências de que a segurança pública do Brasil é um grande problema para o próximo governo.

Uma agenda elaborada pela ONG (Organização Não Governamental) aos presidenciáveis divulga soluções concretas para a segurança pública, como a criação de vagas no sistema penitenciário pela inversão da lógica da punição. "Trata-se de organizar as penas de acordo com a gravidade dos delitos", é o que afirma Felippe Angeli, 37. O especialista trabalha há 12 anos com segurança pública em São Paulo e há três anos é coordenador de advocacy no Instituto - termo em inglês para quem defende interesses públicos. Formado em direito pela USP (Universidade de São Paulo), Angeli conversou com a FOLHA na terça-feira (4) sobre as propostas da ONG para a segurança pública do País.

Como funcionaria o Sistema Único de Segurança Pública, o SUS da Segurança?

Foi uma lei aprovada recentemente pelo Congresso e autorizada pelo presidente Temer. Essa discussão já é um pouco antiga no Executivo. Ela se inspira nas soluções que a própria Constituição Federal já trouxe para os direitos sociais como educação e saúde, na organização do pacto federativo com os direitos. Pegamos o SUS, como um exemplo mais conhecido da população. Temos uma organização que está prevista pela Constituição do Sistema Único de Saúde que a cada nível federativo, estados e municípios participam de forma colaborativa, seja no financiamento, seja na oferta dos serviços para conseguir oferecer à população esse direito previsto na Constituição. No caso de segurança pública, ao invés da saúde, educação ou assistência social, a Constituição Federal não promoveu desde o início um modelo federativo de financiamento e de oferta do direito à segurança pública. Basicamente, a Constituição estabelece que a segurança pública será exercida e garantida por meio de forças policiais que estão associadas a nível estadual. A lei do SUS da Segurança Pública é bastante genérica e tem alguns problemas de aplicação imediata. Semana passada saiu o decreto de regulamentação do sistema, mas uma das questões mais relevantes nesse momento especialmente de crise fiscal dos estados é saber a fonte dos recursos que possam financiar essas ações, ainda mais quando se tem uma série de estados que possuem uma situação fiscal muito grave.

Por que o projeto está congelado?

Na verdade não está. Ele foi aprovado há alguns meses. Na semana passada saiu o decreto de regulamentação. Então agora temos uma oportunidade para começar a organizar esse sistema, embora, como disse, o texto ainda é um pouco genérico e vai muito depender do processo eleitoral que se avizinha, ou seja, dos futuros candidatos, daqueles que serão eleitos de fato e qual a prioridade que darão na implementação desse sistema.

Entre 1996 e 2015, o volume de homicídios no Brasil subiu de 35 mil para 54 mil por ano. Por que isso aconteceu?

Há, na verdade, um aumento inclusive mais relevante no último ano. Mas é interessante notar que esse aumento entre 96 e 2015 tem relação com o desarmamento. Em 2003 foi implementado o estatuto. Nos anos posteriores a 2003, embora você tenha esse aumento constante de fato do número de homicídios, tinha-se um aumento muito acelerado nos anos anteriores da produção do estatuto, de 8% ao ano, e que depois de 2003 estabilizou-se. Diminuiu muito a curva de crescimento, para a ordem de 1,5% ao ano, isso a partir de 2003. Então temos por exemplo uma legislação que ainda que pode ser aperfeiçoada, que, como ação única para resolver um problema tão grave quanto da nossa violência já diminui essa curva de crescimento, ou seja, a aceleração do número de homicídios do País.

Qual a proposta do Instituto para a redução de crimes violentos?

Há varias ações que tem que ser realizadas em conjunto. Uma delas é justamente a manutenção de uma política de controle de armas moderna e eficiente. Outra questão importantíssima é ter o aprimoramento do trabalho com os policiais, especialmente as polícias civis, com a questão da investigação de homicídios, do esclarecimento dos homicídios. Focar no nosso sistema prisional, que já é deficitário, em frente a uma série de carências de recursos, e na punição daqueles crimes mais violentos, como homicídios, e não pequenos tráficos de drogas ou pequenos crimes patrimoniais. Trabalhar e investir em perícia, na polícia científica que permite investigações mais robustas que de fato vão permitir ao Judiciário condenar àqueles considerados culpados pelo crime. O próprio sistema de governança pública, justamente quem financia o que e como os diferentes níveis da federação trabalham de forma integrada, compartilham as informações entre as diversas polícias responsáveis. A questão prisional, que é muito grave em nosso País por essa propagação de facções criminosas que tem tomado controle dos presídios e promovido o crime no interior dos próprios sistemas prisionais. Uma revisão à política de drogas e ações que a gente compilou numa agenda eleitoral que temos divulgado junto aos diversos candidatos à presidência. Não são medidas partidárias ou ideológicas mas sim propostas apoiadas em fatos técnicos e científicas para desenvolver uma política de longo prazo para segurança pública.

Liberar o porte de armas para a população é uma solução para a segurança pública?

De maneira alguma. Isso não se trata de uma posição ideológica, não se trata de gostar ou não gostar de armas, isso são consensos científicos nacionais e internacionais. Todos os estudos técnicos que estão disponíveis no Brasil e no exterior determinam algum nível de relação entre o uso de arma de fogo e o aumento da violência letal. Não se trata de achar ou de gostar, mas da mesma forma que cigarro faz mal, que fumando cigarro você pode desenvolver doenças, você piora a situação da segurança pública com o desarmamento, acho que é uma analogia mais precisa que a gente pode fazer.

Como combater as facções?

Existe uma série de medidas. A gente tem que ter primeiramente um trabalho de inteligência. Há um foco em relação às facções criminosas prioritárias na questão de lavagem de dinheiro. Facções que cada vez mais movimentam somas financeiras mais relevantes. A gente tem que ter um sistema, um poder de inteligência integrada de polícia federal e polícias estaduais. Órgãos do sistema financeiro nacional que consigam combater a corrupção do País, investigada em temas de lavagem de dinheiro e mecanismos para saber por onde passa esse dinheiro do crime organizado. Atuar de forma que as lideranças desse crime organizado não consigam comandar estruturas nas ruas a partir dos presídios. Isto é, a questão das comunicações com o celular, a questão própria da ampliação e da adesão de novos detentos a partir dessas facções criminosas. A gente tem esse poder de aprisionar criminosos de baixo potencial ofensivo com o Estado fornecendo uma mão de obra para as facções criminosas. Esses criminosos de baixo potencial ofensivo, presos, estão suscetíveis às drogas e ao discurso dessas facções, que acaba sendo muito sedutor para aquele jovem aprisionado por um crime não tão violento. Enquanto esse modelo permanecer de fato teremos dificuldades de resolver isso.

O endurecimento de leis penais resolve a situação?

De forma alguma. É o que eu digo, não se trata de endurecer ou não endurecer penas ou aquela coisa de proteger bandido. O que se trata é de buscarmos punir os criminosos mais violentos. Hoje no Brasil temos somente 11% dos presos condenados pelo crime de homicídio. Ou seja, existem muitos presos em todo o País, mas uma menor parte desse presos responde de fato por crimes graves. A gente acaba emprisionando aquele garoto que está na rua cometendo crimes de menor potencial ofensivo. Não se trata de não cumprir a lei ou de não puni-lo, não se trata disso. Se trata de organizar as penas de acordo com a gravidade dos delitos. A gente tem 40% de detentos hoje que são presos provisórios e nem passaram por julgamento. Temos todo um sistema de alternativas penais como modelo que poderia ajudar nesse sentido, de liberar essa população que é ré primária, que não é reincidente, e não deixar de fora da cadeia esses criminosos mais perigosos. De fato ter um sistema prisional que consiga minar completamente a comunicação desses criminosos com o exterior do presídio.

Como tornar as polícias mais efetivas?

É uma série de fatores. A gente precisa de treinamento orientado para um policiamento comunitário, que vem do trabalho de policiamento na forma de prestação de serviço público e não de forma de confronto com a população.
A gente espera que a população colabore com o trabalho da polícia e assim aprimorar e investir na corporação, pagar maiores salários para os policiais. Desenvolver a valorização desses policiais é fundamental, investir em tecnologia, investir nas perícias, em toda essa questão pericial e de balística que possa fortalecer a investigação criminal e na gestão e orientação de fato do trabalho do policial para esses crimes realmente graves e não pequenos crimes que não resolvem o problema.

Como resolver o problema da superlotação dos presídios do País?

Identificar nos presídios quem tem que estar lá e manter essas pessoas lá. E quem não tem a necessidade de estar lá: gente que tem mais de três anos de cárcere e não tem condenação judicial definitiva, gente presa por pequena quantidade de tráfico de droga. Temos que inverter essa lógica para criar vaga no sistema.

Para o Instituto, segurança pública deve ser uma questão estadual ou federal?

Estadual, federal e municipal. Tem que se trabalhar isso de forma federativa na temática dos três níveis da federação. Tem que ter a contribuição inclusive da sociedade civil organizada para enfrentar um desafio dessa natureza.

Como o Instituto vê a legalização das drogas?

Legalização das drogas é um tema muito amplo. Mas precisamos de uma revisão profunda da legislação atual, que, de fato, não dá bons resultados. Não se trata de um debate ideológico. Também não quer dizer que se a gente mudar a política de drogas vai resolver isso por completo, mas é fato que a política atual não dá bons resultados para a segurança, não é necessária uma reflexão muito ampla para chegar a essa conclusão. Eu acho que esse debate tem que ser realizado. Nas questões polêmicas da sociedade temos de pensar de forma mais racional e mesmo emocional quanto à política que a gente tem hoje. As drogas estão aí disponíveis. É impossível o Estado conseguir impedir o acesso dessa população a essas substâncias e isso também gera uma questão de guerra entre policiais e criminosos. E a população está no meio dessa guerra. Lógico que a droga tem malefícios para a saúde dos consumidores, mas não podemos deixar essa guerra continuar entre policiais e criminosos, que atiram de fuzil, e a população que fica no meio das balas perdidas.