Cadáveres feridos - Joel Samways Neto
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 10 de novembro de 1997
Joel Samways Neto
O que acontece quando um sujeito, tomado de ódio, invade um velório e desfecha vários tiros contra o defunto? Essa era uma das questões preferidas dos professores de Direito Penal no meu tempo de faculdade. Alguns adoravam transformar a hermenêutica jurídica numa charada e aplicá-la contra bisonhos segundanistas. Sempre haveria um aluno respondendo, de bate-pronto: Homicídio! E o professor, então, sorvendo vagarosamente a delícia daquele momento, contestava. Ora, ora! Como é possível matar alguém que já está morto? A seguir, remetia-nos ao estudo do Título V, Capítulo II, do Código Penal (CP), dos crimes contra o respeito aos mortos, bem como da doutrina correspondente. Daí verificávamos que o cadáver, ao longo da história da humanidade, sempre foi, em todos os povos, objeto de culto, de respeito, algo sagrado. Aliás, foi desse sentimento de transcendência em relação à morte que levou o homem primitivo a construir as primeiras sepulturas, há cerca de 12 mil anos. A Lei das XII Tábuas (450 a.C) já incriminava a violação de sepulcro, punindo-a severamente: pena de morte, de relegação, de deportação, de trabalhos forçados, além de pena pecuniária.
O objetivo da norma penal, atualmente, é proteger exatamente esse valor ético, social, moral ligado ao sentimento de veneração e piedade que os mortos suscitam, que é análogo ao sentimento religioso (Heleno Fragoso, em suas Lições de direito penal, Ed. José Bushatsky). E, dentre as condutas criminosas colocadas no referido capítulo, lá está o crime de vilipêndio a cadáver, no artigo 212 do CP, assim descrito: Vilipendiar cadáver ou suas cinzas. A pena é de detenção por um período que pode ser fixado em no mínimo um ano, e no máximo três - mais a multa.
Vilipendiar, ainda segundo Fragoso, é considerar vil, desprezar ou ultrajar injuriosamente (loc.cit.) Essa ação tem de ser praticada em público, e pode ser feita através de palavras, de gestos ou por escrito, diz a doutrina. Mas também nada impede que o vilipêndio possa se dar através de fotografias ou imagens, expostas em jornais e televisão.
Quase que diariamente, pela imprensa, somos insultados em nossa mentalidade coletiva de respeito a cadáver. Jornais e programas de TV, que assumem atitudes absolutamente sensacionalistas, não se incomodam de mostrar o corpo de pessoas vítimas de crime ou de acidente de trânsito, por exemplo, de uma forma que pode ser tudo menos respeitosa.
Para não ficar em comentários genéricos, pode-se citar, como tese de estudo, o caso do jornal Tribuna do Paraná, do dia 18/08/97. Na primeira página, expôs a foto do corpo de um latoeiro, encontrado num matagal. Nu, de bruços, cheio de hematomas, com o rosto arroxeado, pernas abertas. E nessa mesma página puseram ainda a foto do corpo de uma moça, assassinada a tiros. Estirada no chão, num ângulo em que aparecia sua calcinha. No dia 23/10/97, esse mesmo jornal publicou a foto de um pintor que fora assassinado na Vila Parolin, em Curitiba, e um outro sujeito assassinado a facadas, e um outro, morto com três balaços. Aliás, nesse mesmo dia, o jornal Diário Popular, concorrente à altura da Tribuna, também publicou fotos dessas vítimas. Fotos maiores. Uma das vítimas, encontrada sem calças, aparecia com uma pequena tarja escondendo a genitália. Semana passada, num quadro de horror, o Diário publicou uma foto do corpo daquele menino, achado morto num bosque do Pinheirinho, também na Capital. O corpo da criança lá, amarrado a uma árvore, igualmente nu, de bruços. O jornalismo tem necessidade disso? Jornais como esta Folha e a Gazeta do Povo limitaram-se à descrição do fato, sem fotos.
Francamente, fotos como essas, imagens desses fatos, mostrando cadáveres, nus ou vestidos, em posições desengonçadas, vergonhosas, podendo às vezes carregar alusões desairosas por escrito ou por palavras (principalmente quando o cadáver é um criminoso), não fazem respeito algum nem ao sentimento dos familiares do morto nem ao sentimento coletivo. O direito de informar tem limites, sim, e limites estabelecidos em lei. É possível imaginar que uma foto, ou uma imagem que ridiculariza, vulgariza um cadáver, submetendo a vexame os seus familiares enlutados, não tenha sido publicada com a intenção de ofender? Quando a intenção é vender, o abuso não avilta, não ultraja, não despreza?
O que está faltando talvez seja um processo judicial - criminal e civil (por dano moral) - , para conter os abusos perpetrados pela imprensa. E, lógico, coragem para processar.
- JOEL SAMWAYS NETO é escritor e procurador do estado do Paraná.