De um lado, os índios. Do outro, produtores rurais. E no meio da disputa, o governo federal. Em meio ao debate sobre a demarcação de terras no Brasil, um indígena foi morto em Sidrolândia (MS), no final de maio. O crime deixou os ânimos ainda mais exaltados e um consenso sobre o tema cada vez mais difícil.
O problema é que a demarcação era feita pelo Ministério da Justiça, com base em estudos antropológicos da Fundação Nacional do Índio (Funai). Só que atualmente o governo discute um novo procedimento demarcatório, levando em conta a posição de órgãos federais ligados ao setor agrícola.
Para o professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Ricardo Cid Fernandes, a mudança determinada pelo governo representa um retrocesso. "Existe uma regulamentação, os estudos são criteriosos e longos. Então, suspender esses processos, muitos já em desenvolvimento, é um atraso em relação a direitos já garantidos e exercidos", alfineta.

A decisão do governo de suspender os estudos sobre a demarcação de terras indígenas pode ser o estopim para uma nova série de conflitos no País?
Acredito que sim. É uma atitude forte dentro de um assunto muito sensível, que envolve uma antiga reivindicação indígena, como a questão fundiária brasileira como um todo. O importante é ter em mente que o processo de demarcação das terras indígenas, desde a Constituição de 1988, tem formato legal e envolve uma elaboração de estudos, apreciação da Funai, do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e outros órgãos independentes. Enfim, existe uma regulamentação, os estudos são criteriosos e longos. Então, suspender esses processos, muitos já em desenvolvimento, é um atraso em relação a direitos já garantidos e exercidos.
Com a paralisação das demarcações, há um sentido de perda. Se os estudos não avançam, os indígenas acabam perdendo as condições de lutar por esses espaços, porque a memória vai se desfazendo. É como um descendente de italiano que na terceira geração não mantém os costumes e não fala mais a língua do avô, por exemplo.

A demarcação é um debate antigo e que ainda está longe de uma solução. Por que o governo não consegue resolver esse impasse?
Os exemplos são muitos. Na década de 1960, no Rio Grande do Sul, durante a reforma agrária, o assentamento de colonos foi feito sobre terras indígenas demarcadas. Então foram atitudes do governo que reduziram drasticamente os tamanhos das terras indígenas. Nos anos 90, o governo do Rio Grande do Sul tentou resolver a questão, recuperar as terras, e inclusive foi à Justiça. Então o governo poderia ter se posicionado sobre a questão anteriormente.
No Paraná, as terras indígenas, muitas delas, foram demarcadas no governo da Primeira República. Não estamos falando de índios que ocupam qualquer terra, mas da existência de uma comunidade indígena em cima de terras oficialmente reconhecidas pelo Estado na década de 40. A partir disso, a colonização, a ocupação no interior do Paraná, ocorreu em terras oficialmente reconhecidas. Então, sem dúvida, o governo poderia ter feito algo melhor. Faltou uma atitude consistente. Não houve uma política de proteção dos indígenas para prevenir que hoje eles ocupem um lugar marginal na sociedade. Isso é evidente.

No Paraná existe alguma área em que é perceptível a possibilidade de conflito?
Já vivemos situações tensas em Mangueirinha (Sudoeste) e São Jerônimo da Serra (Norte Pioneiro), em que os indígenas vivem numa terra muito pequena e próxima da cidade. E a dimensão desta área até a década de 30 era outra, muito maior. Os indígenas mais velhos possuem documentos que comprovam que as terras foram reduzidas. Entre os municípios de Manoel Ribas e Pitanga (Centro), na Reserva de Ivaí, por exemplo, a terra tinha 35 mil hectares, e hoje são 7 mil, há uma perda significativa. Então não podemos dizer que existe um conflito iminente em particular, mas as condições para um enfrentamento estão dadas.

Em todo o País é possível verificar um viés político neste debate, tanto do lado dos ruralistas como dos indígenas. Essa decisão do governo acaba favorecendo um destes lados?
A questão está sendo politizada e não tratada tecnicamente. Em primeiro lugar, a questão indígena é muito diversa. Vinte por cento da Amazônia Legal são hoje terra indígena, então 98% das áreas indígenas brasileiras são na Amazônia. Apenas 2% estão fora destes locais. Só que a população indígena no Sul, no Centro-Oeste e no Litoral é expressiva. Muitos indígenas estão fora da Amazônia e limitados a terras muito pequenas. Então toda a questão tem que ser estudada seriamente.
No caso do Mato Grosso do Sul, com a morte recente do indígena, e com o conflito que está acontecendo, temos uma situação preocupante. Temos os índios da região, além da proximidade com o Paraguai, que tem milhões de indígenas guaranis. Do lado brasileiro temos três, quatro pontos de terras realmente preservadas. Então claro que toda essa população vai procurar seu espaço para manter sua cultura.

Mas a decisão do governo favoreceu os produtores? Como avalia a situação dos ruralistas?
Não sei, os produtores também estão em maus lençóis porque muitos adquiriram terras do Estado, com escritura e documentos. Acabaram desenvolvendo uma situação produtiva, criaram seus bens e agora isto está sendo desconsiderado diante desta suspensão. Obviamente há casos em que produtores rurais são cruéis e violentos. Mas há casos em que não são. Eles estão preocupados com a produção de sua área e também porque a suspensão do governo não vai parar com as reivindicações dos indígenas.

A Funai fechou escritórios regionais no Paraná e agora conta apenas com coordenações técnicas. Por que está ocorrendo esse esvaziamento da entidade?
Uma das atribuições da Funai é zelar pelo patrimônio indígena e é tarefa do órgão cuidar dos interesses desta população. E no Paraná, nos últimos anos, não há um processo de sucesso na demarcação de terras. Falei a respeito do Rio Grande do Sul, do Mato Grosso do Sul, mas no Paraná não houve demarcação das terras, está tudo atrasado. A Funai no Paraná não foi eficiente. Esta transferência das sedes só consagrou a ineficiência do órgão no Estado. As terras indígenas no Paraná estão muito parecidas com o que eram na década de 40. No Rio Grande do Sul foram recuperadas, em Santa Catarina, da mesma forma. Mas no Paraná continuam do mesmo jeito. Pior, os problemas se acirraram, e a população voltou a crescer. E cresceu porque eles têm acesso à saúde, com bons atendimentos. Entre as instituições, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) apresentou mais resultados do que a Funai.

O protesto realizado por indígenas na sede do PT em Curitiba, em maio, foi uma maneira de chamar mais a atenção, de conseguir uma resposta concreta, uma vez que até então eles invadiam apenas as sedes da Funai ou Funasa?
Isso já demonstra que eles estão direcionando o movimento politicamente, articulando suas reivindicações. Estão percebendo que a Funai não toma decisões, que quem toma as decisões é o partido. Achei interessante. Agora, não sei o resultado disso tudo. Eles mostraram uma nova estratégia, pressionando o próprio governo e passando por cima da Funai. Invadir a Funai não interessa mais para eles.

Como está a situação indígena no Paraná? A estrutura de antedimento nas aldeias é adequada?
Existe uma estrutura já instalada dos órgãos do Estado, de educação, de saúde, e são trabalhos com continuidade. Temos um aumento no número de indígenas que estudam, que se formam e que trabalham. Por outro lado, os problemas existem e são perversos. Os índios foram inseridos na marginalidade da sociedade. Há problemas como violência doméstica, abuso de caciques, uso de álcool. Em muitos casos verifica-se que eles estão tomando a periferia das grandes cidades. Um número expressivo de indígenas vive em situação difícil, eles ganham pouco dinheiro.
Queria ressaltar que eles ainda ocupam um lugar marginal dentro da sociedade, estão com os piores trabalhos no mercado. Não há valorização da população indígena. Existe uma escala de direitos que são prioridades para os indígenas e para outros grupos também. Direito fundiário, infraestrutura (saúde, moradia e educação) e direitos culturais. Se você tem seu direito fundiário atacado, ofendido, todos os outros direitos ficam em segundo plano. Por isso os indígenas se mobilizam para tratar da questão fundiária. Existe uma ordem, uma hierarquia que é obedecida na luta pelos seus direitos.