D'Addio aponta a falta de convivência com a diversidade uma das principais desvantagens da educação domiciliar
D'Addio aponta a falta de convivência com a diversidade uma das principais desvantagens da educação domiciliar | Foto: Divulgação



No último dia 12 de setembro, o STF (Superior Tribunal Federal) decidiu que a atual legislação não permite que pais retirem seus filhos da escola para ensiná-los em casa. A maioria dos ministros considera que, além do conteúdo curricular, a rotina escolar garante à criança a convivência com estudantes de origens, valores e crenças diferentes, o que não é possível na educação domiciliar. A Corte entende ainda que a Constituição determina que a responsabilidade pela educação deve ser compartilhada entre Estado e família.
Segundo a Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar), 7,5 mil famílias brasileiras assumiram totalmente o controle do processo educacional das crianças, mas o professor, pedagogo e diretor do Colégio Palmares em São Paulo, Edson D'Addio, alerta que é preciso ter cuidado com esse modelo de educação permitido em mais de 60 países, como os Estados Unidos, onde é chamado de homeschooling.
Contrário à proposta, D'Addio aponta a falta de convivência com a diversidade uma das principais desvantagens da educação domiciliar porque pode implicar prejuízos à formação do indivíduo, mas se diz preocupado também com a ausência de mecanismos de acompanhamento e orientação para os pais e alunos inseridos nesse modelo educacional.

Por que o senhor é contrário à educação domiciliar?
Minha posição contra é nos moldes que estão sendo propostos. Tudo tem pontos positivos e pontos negativos. Mas nos moldes que a gente tem hoje, eu tenho sérias restrições, sim. Sem uma família preparada para isso, sem um pai ou alguém que more na mesma casa com um olhar educacional, isso é bem complicado. Você corre um sério risco de simplesmente a criança ficar em casa e você ir trabalhando coisas sem ter uma meta, uma clareza do que você quer, de como você vai trabalhar essas habilidades da criança ou mesmo os conteúdos. Você precisa ter uma família ou uma pessoa que se propõe a isso muito dedicada.

Nos países onde a educação domiciliar é permitida, regulamentada ou autorizada, essa não é a primeira opção.
Nos Estados Unidos, por exemplo, são em torno de dois milhões de crianças tendo esse tipo de educação. Normalmente, as pessoas passam um período em escola regular e depois vão para o homeschooling. Muitos deles vão já perto da adolescência, com 12, 13 anos. Alguns poucos começam desde a alfabetização. Quando você tem mães ou pais engajados no processo educativo, eles se tornam, na verdade, um profissional de educação dentro de casa. E essas crianças têm sucesso, sim, quando você compara rendimento, avaliações, porque acabam tendo um profissional de educação dentro de casa. Mas o que acontece, mesmo nesses casos, é uma lacuna de convívio com diferentes pessoas, com diferentes frustrações. Isso é muito importante. O homeschooling, mesmo no melhor do seu trabalho, tem que estar atento a isso. Como a família vai promover esse convívio social e esse olhar para o diferente no dia a dia.

O senhor considera a falta de socialização e de convívio com os diferentes a principal desvantagem da educação domiciliar?
Eu gosto de pensar a educação como uma formação do indivíduo para uma sociedade. Se você não pensar que essa pessoa está inserida em uma sociedade que toda ação dela tem uma consequência social, eu acho que a educação está falhando. Se ela não conseguir pensar o macro e que a ação dela tem uma consequência que pode ser macro, a gente está falhando em algum lugar. Tem que ter conhecimento, tem que ter parte cognitiva, tem que ter conteúdo, mas se eu não consigo levá-la para esse lugar, fica complicado. A gente tem que evoluir para um lugar, um momento de olhar social mesmo, onde o ser humano se perceba responsável por tudo o que está acontecendo no entorno dele e no planeta que a gente está vivendo. Em qualquer educação, tanto no homeschooling como na educação formal, isso tem que ser uma preocupação muito grande.

A educação familiar não funcionaria no Brasil?
A minha preocupação, em termos de Brasil, é que a cultura é diferente. Não adianta a gente copiar o modelo de fora e colocar aqui. É bom ou ruim? Não sei. Eu sei que é diferente. Então, a gente pegar e implantar as coisas sem ter uma orientação e sem ter alguns parâmetros que as pessoas possam se guiar para não se perderem, isso é muito sério. Você não pode simplesmente falar "agora pode". Pode como? Como a gente faz? Claro que tem famílias que poderiam fazer uma educação formal muito bacana dentro de casa. E tentar suprir essa questão social em outros aspectos, que é o que se alega, como clube, teatro, treino esportivo. Mas minha questão é: será que esse convívio esporádico é tão rico quanto um convívio maior dentro de uma escola? As escolas estão andando por esse caminho, estão trazendo as crianças para essas discussões. De enxergar o mundo de debates e de perceber as diferentes posições, isso é muito rico. Dentro de casa você não consegue fazer isso e você não vai fazer isso com um convívio de clube.

E quanto a questão pedagógica?

Qualquer um pode ser o professor. E isso é uma das grandes armadilhas, pode-se dizer assim. Eu vou ensinar meu filho o que, como, da onde? Eu tenho tempo para fazer isso? Porque demanda muito tempo. Muita gente que faz o homeschooling nesses países onde esse modelo de ensino é permitido, não trabalha porque essa é a profissão dele. Em uma escola, bem ou mal você tem profissionais que estudam para isso. E em casa? Você tem pais e mães que trabalham o dia todo fora. Como faz? A que horas eles vão ensinar? De manhã, correndo, antes de ir trabalhar? Ou à noite, quando chega do trabalho? E essa criança fica em casa o tempo todo fazendo o quê? Como ela vai estar sendo desenvolvida? Para a grande maioria da população brasileira, é muito complicado você ter uma autorização sem pelo menos criar alguns mecanismos de acompanhamento. A quem eu recorro para tirar uma dúvida? Eu sei que hoje em dia tem internet, mas será que a grande maioria da população tem condições disso? O que me incomoda muito no Brasil, em todos os aspectos, é isso. As leis são colocadas e quando aprovadas, não vêm com um pacote de orientações ou de informações que permitam que as coisas aconteçam.

E como seria a avaliação do aprendizado dos alunos?
O pai não aprova. O que acontece é que o aluno vai subindo. Nos países em que isso é possível, por exemplo, essas crianças todas de homeschooling estudam em casa até os 18 anos. Depois eles fazem os applications (processo para ingressar na faculdade) e vão para as universidades regulares. Não existe essa coisa tão engessada como a gente tem no Brasil, seriada, que aliás a gente não precisaria ter também, a gente tem porque está acostumado, porque a nossa LDB (Lei de Diretriz e Bases da Educação)permite que não seja. Mas você não precisa fazer avaliação nenhuma, não existe repetir de ano, nada disso. Mas se tem isso legalmente aceito, o aluno vai ter um certificado de que ele terminou o curso básico.

Então, se passar no vestibular, subentende-se que ele sabe o conteúdo?
Então, é isso que não se fala, entende? É isso o que me incomoda. Não dá para aprovar uma coisa sem ter esse cabedal de informações e de orientações. Meu filho fica comigo a vida inteira em casa, como ele vai conseguir uma certificação de que ele cumpriu alguma coisa ou que se desenvolveu? Ele vai entrar na faculdade como? Como fica isso? Se decidirem que pode, e aí? O que vem junto com esse pode?

No Brasil há 7,5 mil famílias que ensinam seus filhos em casa. Agora, o STF decidiu que não pode.
É uma situação bem difícil. Tudo tem dois aspectos, positivos e negativos. O mais complicado no Brasil é o julgamento das coisas sem ter, primeiro, uma discussão séria, um olhar sério para todo mundo, para esse país que é continental e tem realidades absurdamente diferentes. Se é um pessoal na escola rural, como faz? Não vai levar na escola? Vou educar em casa? Porque a criança fica duas horas e meia na estrada de terra para chegar à escola, então não vai mais. Fica em casa, quando eu voltar do meu trabalho eu dou um jeito nela. Qual a orientação que o responsável pela educação tem? Qual a instrução que a gente pode dar, que apoio ela tem para poder realmente desenvolver tudo o que poderia estar sendo desenvolvido?

O senhor vê algum benefício nesse tipo de ensino?
Em alguns casos, sim. Tem muita gente que estuda muito quando faz isso. Inclusive há famílias que obrigam o filho a seguir um currículo. Como se eu chegasse hoje e dissesse que se ele quer ficar em casa terá que seguir a BNCC (Base Nacional Comum Curricular). As pessoas que fazem isso com seriedade, academicamente, as crianças se desenvolvem muito bem, o rendimento acadêmico é muito bom. Agora, tem a questão das habilidades socioemocionais. Uma outra coisa que me preocupa é que existe emoção, existe afetividade envolvida no processo educacional e é importante que exista. Mas tem muitos momentos que o educando tem que ter na frente um profissional e não alguém com quem existe vínculo emocional tão forte. Principalmente na nossa cultura. E a gente está em um momento de proteção extrema das crianças. A gente não permite que se frustrem, que caiam, que levem tombo, que sintam medo. Mas tudo isso é importante. Como uma mãe, com um olhar de mãe, lida com isso? O aluno está em um processo de evolução e precisa de alguém que seja de fora. Eu não sinto que o Brasil esteja preparado como nação. Talvez, em alguns nichos da sociedade, sim. São pessoas que estão preparadas, que estudam sobre isso, que têm clareza do que querem. Mas a grande maioria da população, não. Tem países que são extremamente bem sucedidos educacionalmente e não permitem o homeschooling.