Aporofobia, Bolsa Família e dona Benedita!
O programa teve início em outubro de 2003 e se transformou numa verdadeira revolução no combate à extrema pobreza
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quinta-feira, 22 de maio de 2025
O programa teve início em outubro de 2003 e se transformou numa verdadeira revolução no combate à extrema pobreza
Clodomiro Bannwart e Luís Miguel Luzio dos Santos
Em uma cidade imaginária, há um surto de dengue que decorre de dois fatores: a ineficiência de políticas públicas locais, pois o prefeito não acredita na existência do Aedes aegypti, e a eficiência do mercado, que lucra com a venda de repelentes. Dona Benedita foi picada pelo mosquito transmissor, e o médico a quem recorreu para aliviar sua dor foi categórico no diagnóstico: a culpa da doença é da senhora, dona Benedita!
Em um país que não é imaginário, mas constituído por 212 milhões de pessoas de carne e osso, pasmem, há 53 milhões de patriotas que dependem do Bolsa Família, um programa do governo federal que transfere renda a pessoas em situação de pobreza extrema. Os dados por si revelam que ¼ do país vive na miséria, a despeito de ser a 10ª maior economia do mundo. Mas a culpa da miséria é da dona Benedita!
Quanto vale a dignidade de uma pessoa? Quanto vale matar a fome de uma criança? Quanto vale garantir a educação de um adolescente? Parece não haver outra resposta, a não ser um sonoro: não tem preço! Dignidade não pode ter preço! Porém, um número expressivo de brasileiros e de entidades seguem o diagnóstico de culpabilizar a dona Benedita e considerar o Bolsa Família uma política pública perniciosa, geradora de acomodação e responsável por bloquear o desenvolvimento econômico do país.
O programa Bolsa Família teve início em outubro de 2003 e se transformou numa verdadeira revolução no combate à extrema pobreza, num dos 10 países com a pior distribuição de renda do mundo. Foi premiado pela ONU e copiado por mais de 80 países, a exemplo do Opportunity, implantado na cidade de Nova York.
O valor médio do benefício repassado por família é de R$ 684, valor usado principalmente para alimentação, o que representa apenas 3% do orçamento da União. Sendo que, em 2024, aproximadamente 1,3 milhão de famílias saíram do programa por terem conseguido superar o limite de meio salário mínimo per capita, pré-condição para receber o benefício.
Mas, apesar de todos os dados positivos, o que poderia ser visto como o pagamento de uma dívida histórica ou a tentativa de construir um país mais justo e coeso, o programa continua sendo alvo de críticas e de preconceitos de quem ainda o vê como estímulo à acomodação e até mesmo à falta de incentivo para a qualificação de operários.
A experiência do Bolsa Família apoia-se em pelo menos três justificativas fundamentais:
1 – Dignidade humana não é concessão, é direito fundamental.
2 – Trata-se de um investimento no futuro, pois é um programa de “transferência condicional de renda”, exigindo como contrapartida frequência escolar e vacinação em dia.
3 – A transferência direta de renda tem impactos importantes na economia local. Para cada R$ 1,00 repassado pelo Bolsa Família, há um incremento econômico de R$ 1,78. Poucas políticas têm esse efeito multiplicador.
É fácil, e até cruel, transferir a culpa da miséria e da exclusão social, que marcam o país há séculos, para a esfera individual. Problemas estruturais corrigem-se mudando as estruturas, como acesso à educação de qualidade, remuneração digna, reforma agrária e preservação dos direitos fundamentais. Quando o Estado é obrigado a garantir um piso mínimo de renda, avança-se no plano dos direitos de cidadania e, para lembrar o Papa Francisco, na manifestação mais latente de humanidade.
A oposição ao Bolsa Família mascara um preconceito crônico em relação aos mais pobres — um verdadeiro caso de aporofobia, conceito desenvolvido pela filósofa espanhola Adela Cortina, que significa aversão, rejeição ou mesmo ódio às pessoas pobres, taxadas de indolentes e pouco inclinadas ao trabalho. No Brasil, esse apelo discriminatório vem desde de sempre com a licença poética que pariu o mamulengo Jeca Tatu e fixou a grande descendência de excluídos, todos filhos da dona Benedita.
Clodomiro Bannwart – professor de Ética e Filosofia Política – UEL e Luís Miguel Luzio dos Santos – professor de Socioeconomia – UEL

