O fenômeno da chamada globalização na economia e em outros setores das atividades cotidianas poderá transformar os seres humanos em peças de uma engrenagem sufocante, lembrando as antológicas denúncias de Charlie Chaplin, em Tempos Modernos, o filme produzido em 1936, e de George Orwell, 1984, o livro publicado em 1949. O gênio do cinema projetou imagens e situações que descartavam o homem como o centro do universo existencial e ameaçavam esmagá-lo junto com objetos transportados nas esteiras; e o imortal resistente concebeu a opressora figura do big brother que, através da teletelas, invadia a privacidade das pessoas, controlando todos os seus passos e atitudes em um mundo dominado pelos ditadores e assolado pela guerra.
Mas a globalização ameaça alcançar estágios ainda não explorados pela arte e pela literatura. No quadro dos problemas econômicos e de segurança e utilizando imagens de terror e notícias manipuladas para o pânico, a globalização poderá tornar irreversível o eclipse do homem ou fazê-lo desaparecer nas galáxias da informática.
É justamente nessa encruzilhada da civilização e da cultura que é preciso pensar sobre as características ideológicas e afetivas do humanismo e de suas bases fundamentais, assim como as refere Nicola Abbagnano: A) A totalidade do homem, formado de alma e corpo e destinado a viver no mundo e a dominá-lo; B) A historicidade do homem, isto é, os seus vínculo com o passado; C) O valor humano das letras clássicas para estruturar uma consciência aberta em todas as direções, através do conhecimento histórico-crítico da tradição cultural; D) A naturalidade do homem, pois o conhecimento da natureza não é fruto de uma distração mas de um elemento indispensável para a vida e o sucesso.
Essas reflexões me vêm à mente em face do lançamento, hoje, do livro ‘‘Fragmentos de uma Época’’, de autoria da professora Maria Lucia Victor Barbosa, sob o patrocínio editorial da Universidade Estadual de Londrina. Seus textos frequentam todos os sábados um dos espaços nobres da Folha do Paraná e abrangem os mais variados assuntos, com destaque para os temas sociais, políticos e econômicos. Mas ao contrário de muitos analistas, que se apropriam das notícias de ontem para tecer o manto apocalíptico de hoje, contribuindo assim para o coro trágico da anomia, a socióloga vai desatando as amarras que prendem muitos cidadãos à vala do pessimismo e da impotência.
As suas idéias e as suas palavras interpretam um cotidiano modelado com o cinzel da realidade, não raro inquietante, porém nunca abatido pela desesperança. Ela faz a crítica direta e corajosa de pessoas e entidades públicas ou particulares sem recursos eufemísticos ou concessões próprias das vítimas do medo. Os pólos de atração de seus artigos consistem no homem, visto como o sujeito e o objeto do mundo e da vida, e na lucidez, como o caminho para sair do absurdo e chegar à verdade. Essas marcas de qualidade são apresentadas através de uma linguagem direta e simples.
Rejeitando o gongorismo da frase ou a retórica da palavra, Maria Lucia oferece aos seus leitores as melhores rotas para se evitar a confusão e os descaminhos dos escritos babélicos. E lembra Michel de Montaigne (1533-1592), cuja obra é uma das expressões do espírito renascentista que se opunha aos dogmas do pensamento e das crenças medievais. Ele exerceu influência notável como filósofo e estilista, e afirmou que na linguagem, a busca de expressões novas e palavras raras provém de ambição escolástica e infantil: ‘‘Não desejo servir-me de outras palavras que não sejam as usadas por qualquer cidadão’’.
O encontro aos sábados, com as idéias claras e a palavra firme de Maria Lucia demonstra que Vinícius de Moraes está certo ao lembrar que ‘‘o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo/ E para não ficar com as vastas mãos abanando/ Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança/ Possivelmente, isto é, muito possivelmente/ Porque era sábado’’.
E, além de tudo o quanto é possível fazer na ‘‘perspectiva do domingo’’ - da alegria à tristeza, do amor ao ciúme - é preciso também saber escrever e gostar de ler.
Afinal, como previu o nosso amorável poeta: ‘‘Há um renovar-se de esperanças/ Porque hoje é sábado’’ (O Dia da Criação).
- RENÉ ARIEL DOTTI é advogado, professor universitário e membro da Academia Paranaense de Letras em Curitiba