"Ainda estou aqui"
Encontramos nessas duas horas de filme uma tentativa bem sucedida de dar o protagonismo a quem de fato merece!
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quarta-feira, 27 de novembro de 2024
Encontramos nessas duas horas de filme uma tentativa bem sucedida de dar o protagonismo a quem de fato merece!
Padre Manuel Joaquim R. dos Santos
Enquanto assistia ao longa “Ainda estou aqui” percebi que minha amiga estava soluçando. Não era a única na sala. No final, quando lhe perguntei qual a parte que mais a impactara, não hesitou: “foi quando a viúva, finalmente, conseguiu a certidão de óbito”! Não era pra menos! Aquele pedaço de papel representava não apenas o reconhecimento (tardio) pelo Estado da morte de Rubens Paiva, como essencialmente o final de um processo demorado de luto, com todas as consequências nefastas para a família.
O filme é extraordinário. Uma das melhores películas nacionais que já assisti. Retrata do jeito adequado os porões fétidos da ditadura militar e combate a sua negação, mostrando os fatos que, longe do passado, nos assombram agora fora das telas. Um período trágico da história brasileira que “ainda está por aqui”!
Paiva é uma das 434 pessoas desaparecidas ou mortas, sem processos legais legítimos, sem defesa, assassinados pelo Estado que escondia a sua cara no anonimato de paisanos caricatos, com ar de autoridade. Segundo a Human Rights Watch, cerca de 20 mil cidadãos foram torturados. Foi uma noite longa, a preto e branco, que podava sonhos com a mesma foice que segava as vidas de inocentes. Uma escuridão defendida até hoje por perversos mentirosos que se locomovem na penumbra de uma memória coletiva ultrajada.
Se o Carlos Ustra foi “brilhante”, como nos moveremos com segurança nos dias de hoje, sabendo que todos eles estão soltos e impunes? Como dar consistência à argamassa que nos torna um país forte, se usamos um cimento ruim e em quantidade ínfima? Se varremos para o abismo da história os que conspiraram contra ela, que garantias teremos de que fantasmas não assolarão o nosso presente e futuro?
“Ainda estou aqui” é mais do que um resgate histórico. O que já não seria pouco! Porém, encontramos nessas duas horas de filme uma tentativa bem sucedida de dar o protagonismo a quem de fato merece! Chega de evidenciar na tinta dos jornais ou nas redes sociais quem adquiriu, com a sua maldade, um posto no lixo da história!
O filme, muito sabiamente, dá voz e vez às vítimas, aos que “esperam contra toda a esperança”, aos que não desistem de lutar, aos que continuam a acreditar neste país! Um filme assim presta um serviço extraordinário à sociedade brasileira, repondo as peças corretamente no tabuleiro do arcabouço social que nos constitui e provocando lágrimas nos que nunca deixaram de se indignar com este período da nossa história. Minha amiga chorou! E eu também!
Os acontecimentos recentes indiciando e condenando centenas que atentaram contra a Democracia e o Estado de Direito revela o que o filme teme: Há, desde 1889, um conceito equivocado dentro das Forças Armadas de que elas poderão intervir na história com golpes e contragolpes, criando “estados de exceção”, podando liberdades e desconfigurando totalmente a própria missão das Forças Armadas. O último governo, ter levado para a Esplanada dos Ministérios militares, alimentou dentro das Forças desejos perniciosos ocultos de tomada de poder, como evidenciam as gravações do processo sobre golpe de Estado. Eles ainda estão aqui!
Em 1974, os militares portugueses deram um golpe de Estado. Mas muito diferente dos seus homólogos chilenos, que em 1973 inauguraram uma das ditaduras mais cruéis da América Latina. Em terras lusas, com cravos vermelhos nas metralhadoras, os “capitães de abril” devolveram o poder ao povo e imediatamente regressaram aos quartéis. Até hoje as Forças Armadas estão sujeitas ao poder civil legitimamente validado nas urnas.
"Ainda estou aqui" é um triste alerta. É um convite incisivo para que ninguém neste país baixe a guarda. Uma democracia não se consolida com uma magnifica Constituição. É um processo histórico sobre o qual não se poderá jamais tergiversar. A anistia que Trump usará nos EUA é uma farsa fascista que não cabe no nosso país nem em qualquer outro que preze o Estado de Direito.
Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese de Londrina