Depois do furo jornalístico da semana passada, quando Karl Marx me concedeu a honra de uma entrevista exclusiva, tudo ficou banal. É verdade que não pude fazer a maioria das perguntas que desejava ao ilustre entrevistado porque ele tinha que se encontrar com Engels e estava atrasado. Mas quem sabe volta no Carnaval e assim poderemos continuar a conversar, pois sua obra é vasta e há muito que esclarecer em termos de dialética, materialismo histórico, mais-valia, luta de classes etc., nos dias globalizados que correm. Provavelmente Marx terá que reinventar suas teorias, e vou querer saber dele como pretende fazer isso.
De todo modo, o profeta do comunismo parece ter ficado impressionado com o Brasil, pois na carta ele me pede esclarecimentos sobre certas contradições que observou em nossa realidade, as quais despertaram sua curiosidade e desafiaram seu entendimento. Mais uma difícil missão para mim.
Um dos esclarecimentos solicitados relacionava-se com as escaramuças que se desenrolam no Congresso por conta das eleições dos presidentes da Câmara e do Senado. E como atender corretamente a Marx, se a cada dia novas alianças se tecem ao som de desaforos e ameaças que enchem os recintos que os congressistas gostam tanto de chamar de Casa? Casa de quem? Do povo que os elegeu? Por certo que não, mesmo porque, esses entreveros por cargos não interessam ao povo que segue elegendo os mesmos defensores de regalias pessoais ao invés do bem comum, fim último da política segundo Aristóteles.
Mas voltando ao assunto, quando Marx quis saber como é que pode o PT – portanto a esquerda – em determinado momento ter cogitado de dar seu apoio ao deputado Inocêncio Oliveira, portanto a direita, se o PFL apoiasse no Senado a candidatura do senador Jefferson Péres do PDT, portanto, um meia esquerda, tive que reunir todos os meus conhecimentos para explicar que isso só acontece porque não temos partidos na acepção clássica do termo, mas que impera uma lei chamada vale-tudo nessas agremiações, espécies de clubes de interesse sem ideologia, disciplina ou linha programática.
Outros enigmas, por certo de menor profundidade, também estavam listados na missiva a mim endereçada. Uma prova sem dúvida de confiança em meus conhecimentos de professora de Ciência Política, que tentei em vão corresponder. Como explicar ao mestre do comunismo o porquê dos nossos parlamentares rirem tanto? E o pior é que ele queria saber se riam para o povo ou do povo. Mal e mal consegui elucidar que riam uns dos outros por conta das rasteiras que se aplicam constantemente ao longo do estimulante exercício de busca de cargos e honrarias, atividade a que mais se dedicam no Congresso nossos representantes. Naturalmente ressalvei que existem honrosas exceções.
Quanto à colossal quantidade de CPIs que nunca chegam ao um desfecho, não creio que tenha conseguido me fazer entender. Isso porque não apresentei explicações de todo esclarecedoras nem perante mim mesma. E tudo piorou quando o grande intelectual alemão me perguntou a razão de os parlamentares ficarem entretidos com uma CPI do Futebol se o País parece ter ainda tantos problemas a resolver na área social. Isto, e por que ACM chorou, foram as questões mais difíceis que me foram propostas na carta do célebre pensador, que aliás continua extremamente confuso com relação ao nosso intricado panorama político.
Outra coisa que ele de todo não entende, diz respeito ao fato dos esquerdistas brasileiros mais eminentes serem tão ricos, morarem como burgueses, viajarem como burgueses, comerem como burgueses e, ainda assim, deplorarem o capital e os capitalistas. Isso não foi difícil de responder, pois recorri a uma explicação de Roberto Campos. ‘‘Como pessoa física eles são comunistas, mas como pessoas jurídicas, capitalistas.’’ ‘‘Ah!’’, exclamou Karl Marx. E graças a Deus pelo menos sobre esse tema ele não mais me perguntou.
Do Poder Legislativo ele passou ao Judiciário com sua incansável curiosidade. Por que – desferiu – o Brasil tem tantas leis se não costuma cumpri-las? Pacientemente me reportei aos primórdios de nossa colonização para demonstrar que nossa formação histórica não nos facultou um tipo de mentalidade onde sobressaísse o respeito às leis, a noção de direitos e deveres ou mesmo o trabalho metódico e disciplinado.
Acrescentei que o segundo e o terceiro aspectos estão começando a ser superados em algumas regiões do País onde houve maior progresso, mas o primeiro continua como no tempo das colônias espanholas quando se dizia: ‘‘La ley se acata pero no se cumple.’’ Portanto, vale ainda a máxima: ‘‘Aos amigos tudo, aos inimigos a lei.’’ Ainda expliquei que aqui as leis costumam proteger não os inocentes mas os bandidos. ‘‘Hum!’’, emitiu Marx, parecendo se contentar com meus esclarecimentos redigidos num péssimo alemão na carta que lhe enviei com as tentativas de resposta.
No plano da psicologia coletiva também fui sabatinada, pois não é que o homem me indagou sobre o fato do brasileiro viver fazendo graça sobre a desgraça? Segredou-me ele que viu no nosso País gente batendo o carro e morrendo de rir. Gente estrebuchando de rir em velório. E as piadas? É, Marx nos viu rindo a propósito de tudo e de todos. Esclareci que o humor é nossa arma contra os infortúnios, que somos um povo de índole alegre, mas que somos ciclotímicos, pois oscilamos da euforia à tristeza mais profunda com incrível rapidez, conforme estejamos satisfeitos ou não com a política econômica do governo ou com os resultados das Copas do Mundo.
De lambuja ainda escrevi que somos o povo da fila, pois amamos filas, consequência de nossa burocracia desenfreada originada no Estado grande demais e, portanto, sujeito à corrupção e à incompetência.
Depois de enviar a carta com minhas respostas, fiquei meditando sobre estes tristes trópicos. Ai, meu Deus! Ai, que calor! Ai, que tédio!
- MARIA LUCIA VICTOR BARBOSA é professora universitária em Londrina
[email protected]