Águas anuais - Joel Samways Neto
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 12 de janeiro de 2000
Águas anuais
Joel Samways Neto
Todos os anos, as águas de janeiro, fevereiro ou março levam pedra, pau, barraco, automóvel etc. na inundação do caminho. Todos os anos, no período das chuvas, é a mesma história: a comoção dos brasileiros, mobilizados em ações solidárias para ajudar os flagelados pelas enchentes. E sempre morros desmoronam, soterrando casebres e moradores, e lá se vão horas e horas de serviço de salvamento... Com coberturas totais da imprensa em geral, principalmente os telejornais, que, nos horários de almoço e jantar, dão um nó na garganta dos telespectadores com a carga dramática das imagens das tragédias. Só não perguntam, como deveriam perguntar, a respeito das causas, ou pelo menos de algumas das principais causas, desses tristes eventos. Para começar, a investigação deveria esmiuçar o conceito e a mentalidade que sustentam a engenharia urbana. Será que as enchentes são assim tão graves apenas porque os cidadãos ignorantes teimam em jogar lixo nas ruas?
Evidentemente, esse lixo tem uma parcela importante de participação nessas tragédias (tem gente que joga até sofá velho e pneus em riachos e córregos, decerto pensando que isso é comida de peixe; outros pensam que sacos e copos de plástico já são biodegradáveis). Agora, existe uma concepção de engenharia, e aí sim é uma questão de escola, que, segundo especialistas, está obsoleta. Como o terreno das cidades está em boa parte asfaltado, calçado, concretado, o volume de água não drenada a ser escoado é imenso. O sistema não vence.
Para o professor Dr. José Bittencourt de Andrade, PhD em Ciências Geodésicas, um dos grandes problemas das cidades é que os canos de escoamento de água são apenas ductos. Ajudaria muito se fossem ductos e drenos. Isto é, que as águas, além de serem conduzidas aos rios, também fossem drenando-as durante o trajeto. Isso permitiria que o volume de água que chega aos rios diminuísse. Claro que esses sistemas de escoamento são antigos e o custo de uma obra de adaptação talvez a tornasse inviável. Acontece que as tragédias das enchentes também são muito antigas. Por que não ir implantando o sistema de ductos e drenos nas novas canalizações?
OUTRAS CAUSAS Outras perguntas a respeito das enchentes deveriam buscar os motivos de os segmentos pobres da população insistirem em construir morada à margem dos rios e nas encostas dos morros. Se perguntarem aos próprios moradores, certamente eles dirão que essa foi a única área que sobrou para eles. Bem, se se pensar que eles preferem morar perto do centro da cidade, e não na periferia, aí só vão sobrar mesmo essas fatias de terra debaixo de pontes e viadutos, e à beira de rios. Isso é uma parte da história, pois mesmo nas regiões da periferia esse pessoal acaba construindo casa, ou barraco, em área de risco. Esse é o lado do cidadão, que está esperneando para se defender e sobreviver.
Mas e a administração pública onde é que fica? Como é que as prefeituras permitem a construção desses vilarejos exatamente em pontos críticos? Porque se trata de invasão...? Mas por que permitem a invasão? Não seria o caso de se pesquisar como e quando essas invasões acontecem, e qual as providências imediatas tomadas pelas prefeituras? Será que nos períodos eleitorais esses eleitores, digo, invasores, não encontram mais facilidade para agir? Seria possível imaginar que um candidato, oposicionista ou não, incentivasse a invasão de uma determinada área, e prometesse aos invasores que, se eleito fosse, regularizaria a situação deles? Essas perguntas emergem na medida em que muitas dessas invasões só vão despertar o interesse do poder público quando o fato está consumado, e aí resta às prefeituras apenas pavimentar a ocupação. Francamente, não me surpreenderia se a imprensa, de repente, descobrisse que muitas dessas invasões são planejadas, e que as tragédias que nos comovem todos os anos são um risco assumido deliberadamente por algumas de suas próprias vítimas e pelos governantes da hora.
TROTE DO VESTIBULAR As propostas de mudança que estão sendo implementadas pelo Ministério de Educação, no tocante ao sistema de ingresso nas universidades, ainda vai provar que o grande trote do vestibular é o próprio vestibular. Sistema de funil, os exames vestibulares há décadas só têm feito angustiar e adoecer gerações de brasileiros, e enriquecer empresários de cursinhos. O grande trote é que esse método de avaliação, mediante provas unificadas, efetivamente não prova o conhecimento e a real capacidade dos alunos enquanto pessoas individualmente consideradas. Porque o método tem mais de psicotécnico do que de teste de conhecimentos. Há pessoas que até escrevem bem, porém quando são postas em ritmo de exame eliminatório, com horário para produzir, com a tensão do concurso, simplesmente congelam. Estariam por isso incapacitadas a fazer um curso superior? Essa metodologia não faz prova de aptidão. Nem esse tal provão feito para avaliar as condições dos cursos universitários... Porque não avalia a pessoa naquilo que ela tem de singular.
No entanto, isso que não impediu que cursinhos se especializassem não em educar mas em preparar o aluno para passar nesse psicotécnico. Cursinhos que, pela primeira vez, massificaram a sala de aula, reunindo centenas de alunos em aulões regidos por um showman travestido de professor. Um ou dois alunos pagavam o salário do professor e o resto ia para a empresa, decerto para pagar tributos e manter a contabilidade em dia. Alguns desses cursinhos se transformaram em potências econômicas. Agora o Brasil já pode jogar fora o funil.
O mais certo sempre foi deixar que todos entrassem na universidade, e, lá dentro, que o mérito de cada estudante o selecionasse. Do jeito que está, parece mais fácil sair do que entrar. O desempenho profissional dos universitários mostra bem mais do que o provão do Ministério da Educação.
BOLSONARO NO PAREDÃO O caso criado pelo boquirroto deputado Jair Bolsonaro (PPS-RJ) deve servir para o Poder Legislativo conceituar melhor o que seja decoro parlamentar. O deputado, durante um almoço em apoio ao ex-comandante da Aeronáutica Walter Brauer, disse que, se pudesse, fuzilaria o presidente Fernando Henrique Cardoso. Isso em declaração feita para a televisão. Todos vimos. Ele ainda disse que se não pudesse falar o que pensava então que lhe cassassem o mandato. Conversa fiada, de churrascaria. Pois tem muito parlamentar que não pregou o fuzilamento do presidente, mas que cometeu crimes outros, eleitorais ou comuns, e nem por isso o decoro parlamentar foi quebrado. Estão lá, belos e formosos, legislando nossa democracia.
Apesar de não concordar com a expressão agressiva do deputado Bolsonaro, entendo que ele pode interpretar suas próprias palavras aliás, como costumam fazer muitos políticos e concluir que o que elas pretendiam era traduzir o seu inconformismo com a filosofia política do governo federal. Feito isso, sua afirmação seria tranquilamente enquadrada na imunidade parlamentar, que garante ao legislador a liberdade de emitir opiniões políticas. Vai acabar levando algo como um tapa na mão, só. Realmente, não pareceu que ele estivesse fazendo alguma pregação homicida, insuflando a população a pedir a cabeça do presidente nem nada semelhante. Não é a mesma coisa que um cidadão comum, sem mandato parlamentar que o protegesse de certas opiniões, pregar, insuflar mesmo, a que a população cometesse atos de depredação do patrimônio público. Aí é caso de polícia mesmo e ele merece responder por seus atos e palavras como qualquer outro. Já Bolsonaro só conseguiu agradar à minoria radical que ele representa. Ridicularizou-se por suas próprias declarações. Não creio que isso faça com que modifiquem a abrangência da imunidade parlamentar.
MAROLAS NA MÍDIA As redes de televisão estão promovendo concursos de personalidades nacionais. O telespectador vota por telefone, escolhendo qualquer um(a) do(a)s candidato(a)s previamente selecionado(a)s. Curioso é que os candidatos pré-selecionados ou são todos da própria emissora, ou estão mortos, ou em vias de morrer. É como você ter a liberdade de escolher um produto qualquer desde que seja dessa prateleira, desse supermercado. Assiste quem quer, participa quem quer.
- JOEL SAMWAYS NETO é escritor e procurador do Estado em Curitiba, e substitui o jornalista Luiz Geraldo Mazza, que está em férias
