Adeus ao caráter
Gaudêncio TorquatoA matreirice sempre deu o tom na política nacional. Um dia, Benedito Valadares, raposa política, chefe do PSD mineiro e manda-chuva do Estado, encontrou-se no aeroporto com José Maria Alkmim, seu adversário e disputando votos no mesmo colégio eleitoral, e perguntou-lhe de chofre para onde estava indo. O não menos matreiro Alkmim responde: ‘‘Estou indo para Barbacena’’. Valadares retruca: ‘‘Eu lhe conheço; você diz que vai para Barbacena porque quer que eu imagine que vai ao Rio de Janeiro. Mas eu sei que você vai mesmo para Barbacena’’. Esta artimanha tática é conhecida nos tratados de guerra como engano de segundo grau. Alkmim queria tapear Valadares dizendo-lhe a verdade para tirar proveito de sua desconfiança.
Ao longo da história, a enganação tem feito carreira. Mas nos últimos tempos, o jogo da dissimulação e a tática do engodo chegam a atingir níveis aburdos. O governo diz que quer a reforma tributária e nos bastidores luta contra ela, pois arrecada 30% do PIB e teme perder recursos com mudanças no atual sistema. O País parece estar de ponta cabeça. Enchentes anunciadas e mortes previsíveis integram a crônica da banalização dos fatos nacionais. O governador de São Paulo e o prefeito da capital trocam acusações procurando se safar das responsabilidades sobre conflitos provocados por perueiros. Desviam-se da questão central: a competência para administrar a violência urbana, que assume limites estratosféricos.
Que reflexo sobre a sociedade produz a tática da tapeação? O maior reflexo ocorre no campo do caráter, valor ético que atribuímos aos nossos sentimentos e às nossas relações com os outros. Caráter é o espelho da grandeza do homem. Integra um sistema de valores que agrega a lealdade, o compromisso, a ajuda mútua, o companheirismo, a confiança, a inteireza de propósitos. Dos nossos pais e avós, aprendemos a ouvir: ‘‘Aquele, sim, era um homem de palavra’’. Eles queriam dizer: ‘‘Aquele era um homem de caráter’’.
O cenário nacional está sendo celeremente contaminado pela crise da corrosão do caráter, terrível doença estudada por Richard Sennett, professor de Sociologia da Universidade de Nova York, que aponta o ambiente de trabalho do mundo moderno como obstáculo para a formação do caráter e construção do ideal de vida. A degradação do caráter é uma metástase que se propaga em função do acúmulo de mazelas da vida política e institucional do país. Se a crise é de caráter, o é, também, de credibilidade. A crença desmorona porque as instituições e os agentes públicos são pouco críveis.
Leis que não são obedecidas, justiça lenta, projetos casuísticos, políticos que rompem compromissos, distorção de prioridades, banalização da violência, tibieza de governantes, culto à improbidade administrativa, coisas provisórias, assaltos ao bolso do contribuinte constituem fatores que amortecem o ânimo nacional. Dimensionado pela dinâmica da economia e pela expectativa de grupos sociais clamantes por ações de um Estado cada vez anêmico e inerte, o repertório negativo vai descosturando o tecido coletivista e rebaixando o ideal da justiça social.
As doutrinas de inspiração social-democrata são engolidas pelo utilitarismo individualista, pela especulação dos mercados financeiros e pelas guerras fiscais que esfacelam o corpo federativo, tudo sob o patrocínio desse capitalismo globalizado. A convivialidade social perde substância para o eu egocêntrico, para o ludismo solitário dos programas de TV e por uma competitividade cada vez mais amparada em programas de baixo nível. Resplandece uma cosmética que eleva às alturas o culto às regiões glúteas de mulheres cinzeladas pelo pincel da banalização do corpo. E o pior é que a banalização chegou ao sagrado terreno da religiosidade.
Os sonhos dos nossos avós e as metas de nossos pais continuam fortes apenas nas lembranças. Permanecem como réstias daquela sensação gostosa que flagra as lembranças do bucolismo das cidades do interior, o encanto das praças nas manhãs e finais do dia, os planos da melhoria da casa, o sentido de família, a preocupação com o estudo dos filhos, a alegria dos netos nos domingos. Hoje, a radiografia exuberante dos valores do passado é um papel amarelado na parede. É o reflexo mais que apurado do ciclo da corrosão do caráter.
- GAUDÊNCIO TORQUATO é jornalista, professor universitário titular em São Paulo e consultor político
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