Nascido em Maringá, Lourielthon Gualda, 31, formou-se em medicina em 2012 pela UEM (Universidade Estadual de Maringá). Logo depois da graduação, Gualda atuou no Exército Brasileiro, em 2012 e 2013, em missões pelas populações ribeirinhas da Amazônia. Passou sete meses em missões de paz pelo Haiti e dois anos em plataformas petrolíferas. O médico também trabalhou pelo MSF (Médicos Sem Fronteiras) em Maláui e Moçambique, na África.

Imagem ilustrativa da imagem Solidariedade sem fronteiras
| Foto: Arquivo pessoal



Em conversa com a FOLHA, Gualda contou que o trabalho para médicos no MSF não é voluntário, há um salário, porém menor do que o oferecido pelo mercado no Brasil. "São outros ganhos que você vai tendo durante a missão, que eu particularmente não consigo nem mensurar", disse. Para o médico, o que mais o marcou foi perceber a realidade de outros locais em que muitos não têm como escolher uma vida melhor. "O que o ser humano faz para sobreviver? Essa é a grande pergunta que a maioria das pessoas aqui em Maringá e em Londrina não precisam responder". Confira a entrevista.

Como foi que você integrou o Médicos Sem Fronteiras?
A primeira vez que eu tive contato com os médicos sem fronteiras foi em 2009. Eu participava de uma ONG (Organização Não Governamental) de estudantes de medicina, a IFMSA (Federação Internacional de Associações de Estudantes de Medicina). Hoje é a maior ONG de estudantes de medicina do mundo e o Brasil tem um comitê que representa essa ONG. Londrina tem também um braço dessa ONG na UEL (Universidade Estadual de Londrina). Eu participei da organização à época e fui a uma assembleia geral que tinha um participante falando do MSF. Achei muito interessante a filosofia sobre atender uma população totalmente carente. Depois que eu fui para a Amazônia aquilo aflorou e veio ao encontro do que eu estava procurando.
Quando eu me formei, eu queria retribuir. Cresci no Sul, em uma cidade privilegiada, que é Maringá. Tive todas as condições, família de classe média, enfim, eu tive uma vida muito boa. Estudei em bons colégios, passei na universidade e queria conhecer um pouco mais do meu País. Como o MSF só aceita pessoas com no mínimo dois anos de experiência, uma das formas que eu encontrei para ir para a Amazônia foi pelo Exército. Passei três meses atendendo a população ribeirinha de um dos afluentes do rio amazônico. Foi uma experiência fantástica. Sem contar outras experiências que tive por morar um ano na Amazônia. No ano seguinte fui para as Nações Unidas, também pelo Exército e trabalhei no Haiti por sete meses. Isso ajudou muito a formar meu currículo. Com três anos de formado, candidatei-me ao MSF.

E seu ingresso no Exército?
Na minha época, como me formei em uma universidade estadual, só pelo fato de você querer ser voluntário, você já era aceito. Principalmente para a Amazônia, que é um local em que muitas vezes faltam médicos. Então muitas vezes quem quer ir, consegue. Hoje mudou um pouco, existe uma seleção em alguns lugares. Em Curitiba é necessário fazer uma prova para entrar no Exército, mas, na minha época, não era.

Pelo MSF, onde você atendeu?
Fiz o processo seletivo em 2017. Você não escolhe para onde você vai. O interessante é que eles avaliam o perfil. No meu caso eu tinha um background de emergência, trabalhava em saúde pública na Amazônia com malária e doenças tropicais. Eles tentam achar a melhor missão que tenha o seu perfil. Não me mandariam em uma missão de neonatologia (ramo da pediatria) no Afeganistão, por exemplo, porque não tenho experiência em neonatologia. No meu caso, tinha uma missão que necessitava português fluente e era em Moçambique. Minha missão foi HIV e tuberculose. Atendi primeiro no Maláui, onde trabalhei com um projeto de prisões por um tempo. Atendi também em Nsanje (distrito do Maláui) pessoas com HIV avançado. E aí sim fui para a minha missão que durou dez meses em Moçambique. Foi em Tete, cidade que fica no norte do país.

A adaptação foi difícil?
Não é fácil. É uma realidade muito diferente. Acho que o que eu aprendi na Amazônia e no Haiti antes muito me ajudou. Quando você vai para um lugar desse você tem que entender a cultura e tentar incorporar o máximo possível dela sem julgar. É normal a gente ir com nosso próprio julgamento. Como médico, é muito difícil você estabelecer uma relação médico/paciente com uma cultura totalmente diferente porque você já começa tendo a barreira da língua. Por exemplo, em Moçambique, mesmo eu tendo ido para um lugar que teoricamente fala português, as populações mais simples não falam português. Elas falam a língua local. Só ali na região de Tete você tem cinco, seis dialetos. Fica difícil comunicar com o paciente sem o intérprete. Eu era estrangeiro. Visivelmente num local onde você é o único branco, você já é visto como uma pessoa diferente, então o paciente já fica inibido. Eu tentei aprender um pouco da língua local, aprendi a falar "oi, tudo bem?" ou então algumas palavras como febre, tosse e diarreia. Essa é a questão de quebrar o gelo. Aqui no Brasil, a gente tenta fazer isso de outra forma. Como não temos a barreira da língua, a gente tenta achar um assunto em comum. Principalmente com paciente que está internado e que a gente não consegue muitas vezes fazer com que ele aceite aquele tratamento porque tem muito efeito colateral ou o próprio paciente não entende o porquê de ele ter que fazer aquilo, a forma de conseguir se aproximar é achar algum assunto em comum. Nessas missões, o que eu aprendi com um pouco de experiência, não que eu tenha muita, foi a questão de quebrar essa barreira aprendendo um pouco da língua deles.

Qual episódio mais te tocou durante todo esse trabalho?
O tempo passa diferente quando você está ali. Parece que você aprendeu cinco anos de vivência em um ano. No projeto de prisões no Maláui eu estava em Blantyre, capital econômica do país. É um ambiente diferente, eu nunca tinha entrado em uma prisão. Nunca tinha visto por dentro de uma prisão. E você imagina que aquele paciente que vai vir para você - eu trabalhava com HIV e tuberculose - seria um bandido, um cara grande e tatuado, enfim. Depois você começa a entender aquela realidade. Cinquenta por cento dos pacientes que estão na prisão no Maláui são imigrantes, o cara que queria sair de uma condição pior para outra condição. Ou era um cara que roubou uma galinha e por causa disso foi punido. E aí acontece que ele vai para a prisão, acaba sendo violentado e contrai HIV. Isso me marcou muito porque eram pessoas com expressões de desespero, olhares sem esperança, de uma vida que não deixou muitas escolhas. Eu sempre digo que a diferença da realidade que a gente vive aqui para essas pessoas são questões de escolha. O que o ser humano faz para sobreviver? Essa é a grande pergunta que a maioria das pessoas aqui em Maringá e em Londrina não precisam responder. Lá em Nsanje, atendi pacientes com HIV avançado, aqueles que têm um nível de células brancas muito baixo. O Maláui já foi o país mais pobre do mundo. Hoje, continua sendo um dos dez mais pobres. E eu fui na região mais pobre desse país. Me deparei com uma realidade que eu nunca tinha visto. É um local em que as pessoas não têm nada, não tem energia elétrica. É um lugar em que a temperatura faz 55ºC durante o dia. Nessa região, de 300 mil pessoas, tem um único hospital que tem alguma condição, mas que ainda é um hospital muito precário. O MSF tem um projeto ali de suporte para esse hospital. Principalmente para os pacientes com HIV avançado, que são os mais graves e que têm uma alta taxa de mortalidade com 48 horas, por exemplo. Para se ter uma ideia, mais da metade dos pacientes que são internados com HIV avançado talvez não saiam vivos da internação. Lá eu atendia pacientes que estavam com tuberculose há muito tempo e já vinham com dificuldade para andar.

Uma pessoa disposta a atuar no MSF tem que estar preparada para o quê?
Tem muitos mitos. As pessoas acham que pelo nome ser médicos sem fronteiras são somente médicos que podem ir. Na realidade, não. O MSF aceita várias áreas. Desde o surgimento do MSF, em 1970. Foi a união entre jornalistas e médicos franceses porque tinha uma guerra na Nigéria e ninguém falava sobre essa guerra. Como esses médicos e jornalistas ficaram indignados com essa situação, eles criaram essa ONG, que um dos preceitos é ser neutra. Ou seja, não tomar partido de ninguém. A grande questão do MSF é a independência, 96% do que o MSF tem vem de pessoas. Eu sou doador há quase dez anos. Então vem de mim, da minha família, de pessoas que doam. Isso faz com que não tenha política envolvida por trás. Como o MSF não tem essa questão da parcialidade, ano passado eles pararam de aceitar a doação da UE (União Europeia) justamente porque ela tomou algumas medidas contra os refugiados. No meu projeto tinham administradores, o pessoal que trabalha com logística, suprimento, psicóloga, enfermeiros. Em alguns lugares são realizados trabalhos com saneamento básico, então você precisa de um engenheiro. Todo mundo com que eu converso acha que trabalhar no MSF é uma coisa impossível. E eu sempre falo, não é. Eu dou o meu exemplo, cresci em Maringá, uma cidade pequena no contexto mundial. Fiz medicina na UEM. Fui para a Amazônia e eu falava que era de Maringá e ninguém sabia. Quando eu sai do Brasil e fui para os primeiros projetos, eu falava que morava em Maringá e as pessoas não fazem ideia. Para os estudantes de medicina da UEL que conversei, tentei passar que é mais uma questão de se ter vontade de ir. É você estar disposto de tirar quase um ano da sua vida para ir para lá.

E a partir de agora, vai atuar em outras missões?
Fiz vários cursos pelo MSF, tecnologias que não temos no Brasil como do HIV. O HIV aqui no Brasil não é uma demanda tão grande quanto no continente africano. Algumas cidades em Moçambique tem 20% dos pacientes com HIV, uma a cada cinco pessoas podem ter HIV em alguma cidade de lá. No Brasil, a taxa de HIV, mesmo nas piores cidades não chega a 3%. É uma outra demanda. Surgiram algumas missões para esse ano, mas eu preferi tentar passar o final do ano aqui para ficar um pouco mais perto da minha família. A princípio no começo do ano que vem devo selecionar alguma missão para voltar para o campo. A experiência do MSF na África foi tão boa quanto trabalhar com a população ribeirinha no Brasil. Muita gente perguntou por que eu tinha que ir para a África para atender uma população mais carente sendo que a gente tem um monte de pessoas carentes no Brasil. A grande questão é pensar que são seres humanos. Não é porque você não está vendo ele na África que ele não existe. Assim como a gente não vê o ribeirinho estando aqui no Sul. Uma vez ao ano, quando tem enchentes, eles acabam perdendo tudo. A grande questão é essa, tentar ajudar o próximo. Acho que o grande problema, seja em Maringá, em Londrina, é que as pessoas não sabem como começar. Como ajudar, como entrar em uma ONG, como tirar um dia na semana para fazer alguma coisa. Isso porque a gente está com medo das coisas. Principalmente a parte médica. O médico hoje em dia pensa que não pode atender em tal local porque pode ser processado, tem medo de ajudar. Eu sempre falo, para começar a ajudar tem que se informar. Eu comecei a me informar porque era doador da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), do MSF, e aí você começa a receber informação. Em Curitiba descobri que existiam várias ONGs que trabalhavam. Mas só descobri depois que comecei a procurar. A grande questão é que as pessoas querem ajudar mas não sabem como. Todo mundo para quem eu conto que trabalhei no MSF começa a ajudar. Isso porque as pessoas achavam que esse dinheiro não chegava onde tinha de chegar. Do que eu conheci do MSF, chega onde tem que chegar. Se as pessoas querem ajudar, informem-se. Porque as coisas não caem do céu, você tem que ir atrás.