A síndrome do touro - Gaudêncio Torquato
PUBLICAÇÃO
terça-feira, 01 de dezembro de 1998
Gaudêncio Torquato
O escândalo do grampo telefônico, que posiciona o governo de Fernando Henrique em seu pior momento, é a demonstração acabada do conceito da política como um mundo hobbesiano (Hobbes, O homem é o lobo do homem) de implacável competição entre grupos. No caso, competição entre três grupos: contendores do mundo negocial, digladiadores da arena administrativa e estrategistas e táticos do sistema político. O que chamou a atenção não foi a competição em si, comum nos negócios e na política, mas a exposição pública do estilo maquiavel de travar a guerra, pelo qual o fim (denúncia de improbidade administrativa) justificou os meios (gravação de telefonemas).
Na verdade, a história política da humanidade tem sido marcada pelo maquiavelismo. Hoje como ontem, a competição científico-tecnológica e a luta pelo poder econômico internacional se inspiram no modo maquiavélico de fazer política. Seria ingenuidade querer que nossos empresários, políticos e administradores ajam à moda Gandhi, em que os valores humanos da dignidade, honra, respeito e ética se sobrepõem ao interesse material e às táticas de emboscada. O governo é um território de poderes exposto às ambições. E em torno deles se travam as lutas. É possível distinguir de onde partem os tiros.
A primeira luta se trava na frente interna. Alguns grupos combatem-se abertamente, outros intestinamente. Há um enclave burocrático, fincado nas vizinhanças do gabinete presidencial, que quer dar as cartas. Trata-se do time-assessor, que, em função da proximidade, conhece como funciona a cabeça do presidente e sabe identificar pressões e contrapressões. Seus principais personagens projetam-se, psicologicamente, na personalidade presidencial, agindo como cérebro da gestão. Estabelecem a pauta do gabinete central. Sendo assim, procuram se guiar pelo axioma: Quem é dono da flauta, dá o tom. Não são raros os momentos em que o tom é assoprado pelo maestro e apitado pelo ministro Clóvis Carvalho.
Dentro da administração, há um segundo enclave, este mais orientado pelo desejo de influir em matéria econômica. Pesos pesados, como o ministro José Serra, gostariam de fazer correções na política econômica e lutam para fazer valer seus ideais. A isso, Serra acrescenta a missão guerrilheira de combater pela ampliação de espaços de seu PSDB. Afinal de contas, ao lado de Tasso e Covas, estará na lista para o páreo de 2002. Na frente externa, o eixo negocial deixa claro que perdedores e ganhadores saíram com motivos para atirar depois do leilão da Telemar. As gravações revelaram a direção e a intensidade dos disparos. Maquiavel deu a arma e o alvo foi atingido.
Na área política, os contendores se bateram de maneira aberta. Motivo imediato: o Ministério da Produção. Motivo de longo prazo: a campanha presidencial de 2002. Um superministério do PSDB será o trator para abrir horizontes políticos. Atropelará os carros do PFL e do PMDB. O pefelismo conta com a competência de ACM, cada vez mais identificado como símbolo de autoridade e energia. O PMDB tem Sarney como força histórica de reserva; Itamar como ícone contundente mais à esquerda, e Michel Temer como força moral e perfil de inovação e equilíbrio.
Nesse cenário cheio de minas e bombas, o grampo atingiu as asas tucanas, mas não a ponto de inviabilizar vôos a médio e longo prazos. O episódio equalizou as maiores bases partidárias, colocando-as no eixo de partida do segundo mandato de FHC. O lamento exagerado pela perda dos irmãos Mendonça de Barros e de Lara Resende faz parte da liturgia de solidariedade. Não são insubstituíveis. O realce sobre suas qualidades atenua os efeitos nocivos provocados pelos diálogos grampeados. Ao contrário do que se pode inferir, Fernando Henrique não sai perdendo. Emerge como vítima. Ser-lhe-á oferecido aconchego na forma de uma trégua transitória. E assim, o País se salva, evitando a síndrome do touro: pensar com o coração e arremeter com a cabeça.
- GAUDÊNCIO TORQUATO é jornalista, professor universitário em São Paulo e presidente da ABCOP (Associação Brasileira de Consultores Políticos)