Leio, em vários sítios, a morte de Nitis Jacon, a quem sempre tratei como primeira dama do Teatro latino-americano. Já falei dela e do lugar dela em minha vida acadêmica por aqui, mas a morte falou por mim o que até então não pensara dizer: ela faz a passagem credora da humanidade.


Num mundo bipolar, onde a geopolítica vale centenas e centenas de vida, onde a morte dá saraus em guerras por petróleo, território e fundamentalismo religioso, onde um pastor neopentecostal (malafaia) chama hipócrita um Papa católico (Francisco) por este ter orientado os padres a abençoarem uniões homoafetivas, onde uma imprensa familiar (Civita + Marinho + Frias + Mesquita) brasileira apoiou o golpe militar de 1964, o medo sempre esteve em nosso convívio.

Assim, fruto do cotidiano esquizofrênico de nossa vontade capturada, todo aquele que amava as artes e a vida (com o perdão do pleonasmo) se tornou alvo dos milicos ladrões da democracia.

Jara no Chile, Violeta Parra em Argentina, Chico Buarque e Gilberto Gil no Brasil, Baez na Bolívia (dentre vários outros) e Nitis Jacon pela América do Sul são exemplos vivos (alguns, na medida em que muitos foram assassinados pelos milicos assassinos) de minha fala, cuja geografia sugerida vou tentar explicar, sem ser pretensioso ou me deixar levar pelo evento final da vida de Nitis...


Nitis não era uma grande poetisa do quilate de Victor Jara, tampouco de Chico ou Gil. Tanto quanto não cantava como Violeta ou Joann. Mas fez o que nenhum deles ousou: despejou a cultura latina do teatro em Londrina, através de seu filho mais famoso (FILO), naquilo que trouxe para cá, em plena efervescência da ditadura, vários e variados grupos teatrais, para encenarem as mais diversas e distintas performances.

Passou despercebido dos censores porque o cara que se dispõe a ser um censor é muito burro ou preguiçoso moral, naquilo que a leniência de seu caráter já nasce corrompida em um lambe botas que lhe precede. Foi assim que a resistência potencializou o enfrentamento aos canhões do império, pela coragem e sutileza da gentil Nitis, a grande dama de nosso conflito civil pela restauração do espectro democrático.

Fez tudo isso e muito mais, sem disparar um único tiro. Sem ser, sequer, comunista. Nitis foi a amante mais fervorosa que as artes cênicas já tiveram e em seu cotidiano colorido se deixou contagiar pela joie de vivere que sempre caracterizou o trato empático de quem vê o mundo pela lente das artes.

Nitis estabeleceu um parâmetro difícil de elevar, naquilo que conjurou em favor da resistência a metáfora interpretativa que, se usada em sua dimensão galáctica, vence a própria estrela da morte.

Foi exatamente o que Jacon fez: brilhou o brilho das estrelas de aluguel que o FILO permitiu desfilar por aqui, enquanto lá fora os canhões opressores, pela santa ignorância de seus mastins, não conseguiam entender o que é que poderia lhes incomodar o sujeito que fala com uma caveira, ou aquele outro que oferta o próprio reino por um cavalo.

Filigranas baby, filo granas baby...


Nitis, ademais, me chama na lembrança, sussurrando com as "mãos de Eurídice", um palco infinito onde meu primeiro orgasmo seco anuviou seu colo fecundo, no palco do Ouro Verde, sob o lume de uma decisão enviesada de um juiz de direito que proibia a encenação de uma peça, ao argumento de que menores poderiam estar no teatro, haja vista a ausência de controle efetivo do estado.


Pobre do oficial de Justiça que foi portador da ordem esquecível. Pobre de nós que resistimos e enfrentamos os milicianos que lá se fizeram presentes para garantir o cumprimento da ordem. Pobre do Poca (se tá vivo ainda, não é amigo?) que ousou resistir. Do Zé Ganchão que xingou o jovem milico garantidor da crueza indômita do judiciário, acusando-o de não ter conhecimento para saber o seu papel na história.

Pobre deste pequeno escriba que invadiu o palco a declamar uma poesia pequena de minha construção (cada flor que cresce afaga uma bruxa; o vento, que espia os dias, rouba da rosa o tempo, espalhando a memória pelo caminho do desejo), sendo retirado pelo pescoço por um brutamontes a serviço da morte.

Só "se conformemos, quando dona Nitis falou": "Vamos nos retirar e voltar".

Foi o que fizemos. Saímos e lá fora, após sermos submetidos ao controle etário que acalmou o estado, tornamos todos as poltronas da vida, onde se encenou mais um dos grandes momentos do teatro.

Nitis sem querer e também querendo (porque do lado do império havia tanto sicofanta burro que não se paria um raciocínio mínimo), acendeu o pavio do questionamento e despertou a desobediência civil em uma geração inteira que amava o teatro.

Foi assim que, aos meus olhos, Jacon se tornou a grande dama do teatro de latino América. Obrigado e que a terra te seja leve.

Saudade Nitis, tome uma com meu Pai ai em cima!

João dos Santos Gomes Filho é advogado em Londrina