A escola entra na roda de capoeira
Mesmo com a abolição da escravidão, manifestações culturais da população negra seguiram coibidas pelo Código Criminal
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segunda-feira, 16 de junho de 2025
Mesmo com a abolição da escravidão, manifestações culturais da população negra seguiram coibidas pelo Código Criminal
Fabiana Moro Martins
A capoeira é um símbolo vivo da cultura brasileira. Mistura de dança, luta e jogo, ela representa uma forma única de enxergar e se relacionar com o mundo. Com raízes profundas na África, a capoeira vai além do movimento: é identidade, resistência e cultura. Presente em todos os estados do Brasil e praticada em mais de 150 países, a capoeira se firmou como uma das referências culturais mais expressivas da contribuição da matriz cultural africana para a cultura brasileira.
Originada no século XVII, em pleno período escravista, a capoeira se desenvolveu como forma de sociabilidade e solidariedade entre os africanos e africanas escravizadas e como estratégia para lidarem com o controle e a violência a que foram submetidos neste país por quase quatrocentos anos. Vale lembrar que mesmo com a abolição da escravidão, manifestações culturais da população negra seguiram sendo coibidas pelo Código Criminal de 1890, o que contribuiu para preservar elementos racistas na sociedade. Por isso, ainda hoje, a capoeira segue sendo uma força ativa contra o racismo e pela valorização da ancestralidade e da cultura afro-brasileira.
No espaço da roda de capoeira, são transmitidos os saberes e conhecimentos relacionados aos cantos e gestos da prática, que expressam uma visão de mundo e um código de ética, envolvendo valores como respeito, cooperação e perseverança. É na roda de capoeira que se formam e se consagram os grandes mestres e mestras, a partir da construção coletiva do aprendizado e de uma competição saudável.
Foi justamente para valorizar a história de resistência negra no Brasil e a multidimensionalidade dessa prática cultural que o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) reconheceu a roda de capoeira e o ofício dos mestres e mestras de capoeira como patrimônio cultural do Brasil, em 2008, sendo inscritos no Livro de Registro das Formas de Expressão e no Livro de Registro dos Saberes, respectivamente. Além disso, a roda de capoeira foi inscrita na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco, sendo considerada, portanto, parte do conjunto de práticas culturais, conhecimentos e saberes que possuem importância fundamental para a diversidade cultural da humanidade.
No escopo da política nacional de patrimônio imaterial, o reconhecimento da capoeira resulta na responsabilidade do Estado sobre a gestão desse bem cultural, compartilhando entre as diferentes esferas de governo ações de proteção e promoção do patrimônio, com participação da sociedade.
É aí que a escola entra na roda. No entendimento do Iphan, uma das ações mais importantes da sua política diz respeito à promoção da educação patrimonial: ensinar às novas gerações o valor do patrimônio cultural brasileiro. Nesse sentido, trazer o bem registrado e seus mestres e mestras para dentro do ambiente escolar, estimulando os alunos a conhecerem e valorizarem uma manifestação presente em todos os estados e em grande parte dos municípios brasileiros, como é a capoeira, é fundamental. E contarmos com iniciativas de prefeituras e governos estaduais, sensíveis da importância de se promover o patrimônio cultural brasileiro, é efetivamente alcançarmos as pessoas em seus territórios.
Além dos benefícios que pode representar para a relação da juventude com o patrimônio cultural e seu entendimento sobre a formação social do Brasil, a vivência da capoeira no ambiente escolar é uma oportunidade de garantir outros direitos a crianças e adolescentes do país, como lazer, saúde, pleno desenvolvimento cognitivo e socioemocional e inclusão social. Ademais, reitera-se, significa uma vitória sobre visões discriminatórias e racistas sobre um patrimônio afro-brasileiro, que deve ser tratado com respeito e compreendido em suas diferentes dimensões.
Fabiana Moro Martins, superintendente do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico) no Paraná

