A colheita da vida

Maria Lucia Victor Barbosa
A palavra escrita me fascinou desde a infância. Aos seis anos de idade, meus companheiros de distração não eram as crianças que via de longe brincando na rua. Para me divertir tinha os livros, com suas capas atraentes, suas gravuras coloridas e aquelas letras graúdas que facilitavam a leitura. Havia um mundo que se descortinava através daquelas páginas, muito mais interessante do que os folguedos restritos dos meninos e meninas de minha idade. Eles que jogassem bola ou peteca.
Lendo, descobri o Egito Antigo e por ele me apaixonei aos sete anos. Havia especialmente na história egípcia um demiurgo, criatura entre a natureza humana e a divina, que me pareceu fabuloso. Seu nome era Toth. Sua aparência podia ser representada ora sob a forma de um homem com cabeça de íbis, ora como um babuíno pensativo e, mais raramente, como um homem com cabeça de touro. Toth para o povo egípcio do maravilhoso e remoto tempo que ainda teima em se ocultar nas brumas do mistério, era o Senhor das palavras divinas. E mais ainda ele era, pois o consideravam a palavra de Áton, o inventor da palavra falada e escrita, assim como das fórmulas mágicas usadas pelos deuses. Toth era o regulador do tempo e aquele que fazia reinar a ordem no universo. Foi também chamado de Grande Mágico e, melhor ainda, de Deus dos Escribas. Hoje sei que o valor dado ao demiurgo da mitologia egípcia se prende simbolicamente, sobretudo, à importância da palavra escrita, pois ela pode ser sagrada e mágica. O que está escrito permanece e, assim, podemos organizar o tempo através da história e magicamente aprisioná-lo para sempre.
De tão importante é a palavra escrita, que os povos que não tiveram sua história registrada desapareceram sem deixar rastro. O mesmo aconteceu com instituições e organizações que só edificaram com pedra tijolo ou mármore sem perceber que a obra escrita constrói para a posteridade de forma mais perene.
No Brasil, onde é escassa a tradição documental, o passado se perde nas ciladas da memória, nos desvãos do tempo. Somos um povo desmemoriado. Por isso, nossas tradições se esvaem, não porque elas inexistam, mas porque não sabemos que elas existem. Sem tradições ficamos sem valores próprios e nos tornamos meros copistas de valores alheios, que funcionam como caricaturas morais ou comportamentais.
Assim sendo, achei extremamente louvável que a Sociedade Rural do Paraná, por iniciativa do seu atual presidente, Francisco Luiz Prando Galli – e da aquiescência de sua diretoria – tenha desejado registrar num livro os esforços, realizações e conquistas de todos aqueles que criaram, conduziram e sustentaram a entidade até o presente momento.
Recaiu sobre mim a complexa tarefa de trazer a público, de maneira sistematizada, o que se encontrava disperso em documentos, jornais e revistas. Ao mesmo tempo, fui em busca dos depoimentos daqueles que participaram ou continuam a participar da Sociedade Rural do Paraná.
Confesso, porém, que essa não foi tarefa fácil dada a exiguidade de tempo que tive para realizá-la: três meses para pesquisar, menos de três para redigir. De fato, nunca escrevi tanto em tão curto tempo. E nunca pesou sobre meus ombros tamanha responsabilidade. Afinal, meus quatro livros anteriores foram escritos com ritmo e temas por mim determinados. Esse, não. Era uma ‘‘encomenda’’ de uma entidade respeitabilíssima, diante da qual seria imperdoável qualquer deslize. Mais ainda, o livro foi escrito para ser entregue na 40ª Exposição Agropecuária e Industrial de Londrina, a se realizar na mágica confluência do ano 2000, portal do novo milênio, devendo ao mesmo tempo brotar no mês de abril, quando se comemora 500 anos de Brasil.
Desafio posto, desafio aceito. Não é assim que se vive? Mas empreitada era vasta. Mesmo porque, a Sociedade Rural do Paraná, nascida em 1946 com o nome de Associação Rural de Londrina, se mescla à própria história de Londrina e da região do Norte do Paraná. Para compreender a SRP, portanto, foi preciso retornar ao tempo da colonização efetuada pela imaginação e pelo talento dos ingleses da Companhia de Terras, que juntamente com brasileiros dispostos ao trabalho realizaram a única reforma agrária que deu certo no Brasil. E sendo assim, não há como não separar a história de vida dos senhores do café, os cafeicultores daqueles tempos, do desenrolar dos fatos que, tendo sucedido nesse recanto do Paraná, fizeram brotar da terra fértil e dadivosa a colheita do progresso da Nação.
Esta história contei por escrito, a pedido de Francisco Galli. Registrei lutas e sacrifícios, conquistas e vitórias dos homens da agricultura e da pecuária. Pesei sua importância no cenário nacional. Mostrei a paixão de todos eles por sua entidade, cujo todo é maior do que as individualidades que o compõem. Cuidei de apresentar as realizações materiais de sócios e dirigentes. De brasileiros cujo trabalho importantíssimo propicia o alimento às populações dessa imensa Pátria. Ao final, demonstrei seu fazer político que, não sendo partidário, se volta para as necessidades de uma classe mal compreendida pela sociedade e pelos sucessivos governos, mas que é de fundamental importância para a sobrevivência de todo o povo.
Terminado o livro, chamei-o ‘‘A Colheita da Vida – Resgate Histórico da Sociedade Rural do Paranᒒ. Já era tarde da noite e vi na parede a sombra de uma cabeça de íbis. Ou pensei ter visto. De qualquer modo, a magia da Sociedade Rural do Paraná, através das palavras está registrada para que as gerações futuras saibam o que se passou nestas plagas brasileiras. No dia 11 de abril, às vinte horas, no Parque Governador Ney Braga, na Casa do Criador, ‘‘A Colheita da Vida’’ será realizará dentro da maior e mais importante Exposição que se faz neste Brasil de 500 anos. Tudo porque, pela primeira vez, um presidente da Sociedade Rural do Paraná teve a idéia de registrar a história da entidade e eu, desde os seis anos, adoro os livros.
MARIA LUCIA VICTOR BARBOSA é socióloga e escritora em Londrina.
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