Volta e meia, o Brasil se vê frente a frente com uma velha senhora: a censura. Nos últimos tempos, reproduziram-se vários episódios e ensaios de proibição tendo como alvo principalmente a arte e a cultura.

Entre as garantias fundamentais da nossa Constituição está a liberdade artística, independentemente de licença ou censura. Em outras palavras, ninguém precisa de autorização para fazer arte nem expô-la, e ninguém pode impedir que outras pessoas se expressem artisticamente. A Constituição ainda garante a livre manifestação do pensamento e da liberdade religiosa. Na interpretação do STF, essas liberdades não podem ser diminuídas e, muitos menos, excluídas. Isso ainda vale para a liberdade de imprensa e demais publicações.

No entanto, não é isso que vem se desenhando de uns anos para cá, quando a censura que parecia ter sido enterrada com o restabelecimento pleno da democracia passou de novo a rondar espetáculos de dança, teatro, exposições de arte e até feiras de livros.

A investida mais recente, partiu do MMFDH - Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos -, sob a gestão da ministra Damares Alves que promoveu, na última semana, uma campanha contra o filme 'Lindinhas', da diretora francesa Maimoune Doucoré, exibido na Netflix. Na visão da ministra, o filme traz "pornografia infantil e inúmeras cenas com foco nas partes íntimas das meninas que se apresentam numa dança sensual", coisa que, definitivamente, não está no script nem nas cenas.

O filme trata dos embates culturais de uma menina muçulmana que muda-se com os pais para um subúrbio de Paris, onde tem contato com amigas do colégio que fazem danças sensuais a partir do que veem na TV. Na realidade, o filme é uma crítica à cultura de massa e à erotização infantil, não o seu oposto. O filme ainda é um manifesto contra a submissão feminina a partir da ótica de uma família muçulmana, na qual a mãe deve aceitar que o marido tenha uma segunda esposa. Ocorre que a Netflix fez uma promoção sensacionalista do filme, apresentando um pôster que não é o original como material de divulgação. Isso bastou para que, mesmo quem não assistiu ao filme, o tome como uma peça de "pornografia infantil", como descreve o ofício encaminhado pelo MMFDH, na segunda-feira (21), à Coordenação da Comissão Permanente da Infância e Juventude (COPEIJ) pedindo a proibição do filme.

Falta a interpretação correta de uma obra por parte de quem tenta controlar a erotização das crianças - o que é necessário - ao pedir a censura de um filme que a denuncia.

Este episódio soma-se a outras tentativas de censura ou mesmo de varredura em órgãos governamentais responsáveis pela produção teatral, audiovisual e das artes plásticas no País. Trata-se de um fenômeno que os brasileiros não viam acontecer com frequência desde a promulgação da Constituição vigente em 1988. A impressão é que Brasil entra num túnel do tempo retrocedendo em décadas. O que não é aconselhável para um País que quer brilhar em todos os segmentos, o que inclui sua pulsação artística e criativa em consonância com o mundo contemporâneo. No século 21 temas como a liberdade feminina e os padrões culturais devem ser discutidos..

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