São Paulo - A roda da história encerra ironias, e não são poucas as que envolvem a retomada do poder pelo Talibã no Afeganistão. O grupo fundamentalista islâmico virou sinônimo de violência política, obscurantismo e governo pelo terror nos cinco anos em que dominou o país, de 1996 a 2001. Chutado de Cabul pelos americanos, que buscavam sua vingança pelo 11 de Setembro e acabaram atolados numa guerra sem fim devido aos atrativos geopolíticos que sua projeção de poder oferecia, passou 20 anos comandando atos de terror e insurgência. Agora, passados exatos dois meses de sua entrada triunfal na capital, dois meses de campanha militar na esteira da retirada americana, quem tem de lidar com a emergência de uma ameaça terrorista são os próprios extremistas.

Na condição de vidraça, o Talibã encara hoje o Estado Islâmico Khorasan, a sucursal afegã do grupo jihadista de infame reputação. Esse grupo já havia dado as caras no maior ataque realizado nessas duas conturbadas décadas em Cabul, quando 169 civis e 13 militares americanos foram massacrados por bombas durante a atribulada evacuação ocidental da capital. Houve outros ataques desde então, e o desta sexta (15) em Kandahar repete o padrão do anterior, executado também contra uma mesquita xiita em Kunduz. Pelo menos 62 pessoas morreram e outras 74 ficaram feridas após a explosão no sul do Afeganistão, segundo a Bakhtar, a agência de notícias oficial do Talibã.

Mulher vestida com burka passa em frente à mesquita alvo de ataque em Kandahar
Mulher vestida com burka passa em frente à mesquita alvo de ataque em Kandahar | Foto: Jawed Tanveer/AFP

Há algo macabro em ver autoridades talibãs condenando o terror, lamentando os mortos e prometendo proteger a minoria (talvez 15% da população) xiita. O ramo minoritário do islamismo foi, nos anos do califado medieval imposto pelo grupo nos ano 1990, um de seus alvos prioritários, afinal. As sextas são dedicadas a orações em todo o mundo muçulmano, e não constitui novidade aderentes radicais desta fé usarem o dia para infligir o máximo de baixas civis em campanhas terroristas.

Se os ataques do EI-K se tornarem um padrão, como tudo indica, o potencial desestabilizador para o governo talibã é considerável. Mas não deve ser ainda confundido com o prenúncio de uma guerra civil no país.

O fantasma está à espreita, respeitando a tradição de tribalismo exacerbado da região, mas o EI-K é um elemento exógeno naquele ambiente. Pode servir a senhores da guerra insatisfeitos com os novos inquilinos do palácio presidencial de Cabul, mas não emula o que o próprio Talibã sempre foi: um grupo insurgente com pretensões territoriais.

Por outro lado, os talibãs têm um controle por ora firme da maior parte do país, com pequenos bolsões de resistência no mítico vale de Panjshir, lar da oposição ao regime desde sua primeira passagem pelo poder. Assim, se o EI-K e suas carnificinas pontuais são instrumento de rivais do Talibã, nada sugere por ora que haja condições objetivas de desafio ao domínio dos extremistas. A natureza fluida da política tribal, claro, não permite vaticínios definitivos aqui.

Mas uma coisa é certa: o terror poderá ajudar, e eis a ironia se apresentando novamente, o Talibã em sua cruzada por reconhecimento internacional. Nesta semana, a União Europeia anunciou que enviaria 1 bilhão de euros para os afegão mais vulneráveis. É óbvio que parte desse dinheiro acabará financiando o precário governo talibã, que encara uma crise social e econômica de grandes proporções.

Houve diálogo entre autoridades do grupo e emissários ocidentais, americanos inclusive, pela primeira vez desde a retomada do poder de agosto. A China, fiadora desde o começo desta versão 2.0 do grupo por buscar estabilidade junto às suas próprias áreas muçulmanas, insiste no engajamento. A Rússia faz o mesmo, e receberá uma delegação talibã para conversas.

Por ora, ninguém reconhecerá o regime talibã, em especial pela baixa confiabilidade em suas promessa de moderação - mulheres e adversários perseguidos que o digam. Mas a realidade de que os antigos terroristas agora são alvos do terror poderá facilitar o recebimento crescente de ajuda externa, o que ao fim poderá gerar a admissão tácita, por parte dos vizinhos e do Ocidente, que o Talibã é um mal menor.

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