Slogan do Partido Comunista Chinês, 'milagre' do fim da pobreza é controverso
Feito é a principal bandeira do governo asiático, mas é questionado por especialistas em desigualdade
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quarta-feira, 30 de junho de 2021
Feito é a principal bandeira do governo asiático, mas é questionado por especialistas em desigualdade
Fernando Canzian - Folhapress
São Paulo - Principal bandeira nas comemorações do centenário do Partido Comunista Chinês e obsessão na última década, a erradicação da pobreza na China vem sendo comparada a um "milagre" pelo líder Xi Jinping.
A "vitória completa" anunciada pelo governo chinês teve até entrega de medalhas aos burocratas envolvidos, mas o feito gerou controvérsias e é disputado por especialistas em pobreza e desigualdade, sobretudo nos Estados Unidos, maior rival geopolítico de Pequim.
A propaganda do partido sustenta que 100 milhões de chineses saíram da pobreza extrema nos últimos oito anos, passando a viver com mais de US$ 1,90 (R$ 9,50) ao dia em 832 distritos e 128 mil vilarejos.
O feito teria colocado fim aos derradeiros bolsões de fome e miséria, sobretudo rurais, que marcaram muitos períodos da história da China. Além das dúvidas sobre a sustentação dessa conquista no longo prazo, o marco tem sido considerado tímido diante do rápido progresso econômico chinês.
Pelos critérios do Banco Mundial, a China tem hoje um GNI (Gross National Income, ou renda nacional bruta) per capita de US$ 10,4 mil, o que a enquadra entre os países de renda média alta. A partir de 2018, o Banco Mundial criou, além da régua do US$ 1,90 ao dia para países pobres, as faixas de US$ 3,20 para os de renda média baixa, e de US$ 5,50 para aqueles de renda média alta, como a China de hoje.
O país asiático começou a perseguir a meta de US$ 1,90 ao dia antes da adoção dos novos critérios e, ao comentar o anúncio oficial de Pequim, Martin Raiser, representante do Banco Mundial na China, afirmou ter "certeza de que a erradicação da pobreza absoluta nas áreas rurais foi bem sucedida, dado o volume de recursos mobilizados". "Mas temos menos certeza de que isso seja sustentável."
Desde 2012, quando Xi assumiu o poder, o governo chinês injetou quase US$ 250 bilhões em programas de combate à pobreza. É como se o país gastasse em oito anos o equivalente a 40 anos de orçamento do Bolsa Família. Com a mão pesada e financiamentos do Estado, a China impôs a centenas de empresas a obrigação de desenvolver projetos para incluir famílias pobres entre os beneficiários de seus negócios.
As dúvidas sobre a sustentabilidade financeira desse tipo de política, que requer cada vez mais a participação do Estado dentro das empresas - inclusive com membros do Partido Comunista Chinês nos conselhos de administração -, somam-se aos questionamentos sobre o parâmetro de US$ 1,90 ao dia.
Indermit Gill, pesquisador da área de Economia Global e Desenvolvimento do Brookings Institution, um think tank de Washington, sustenta que o critério de US$ 1,90 ao dia não deveria ser mais aplicado à China, considerando o atual GNI per capita chinês de US$ 10,4 mil. "A China de hoje está quase tão bem quanto os EUA em 1960, quando o país se tornou uma economia de alta renda. Naquela época, os EUA adotaram pela primeira vez uma definição oficial de pobreza, classificando como pobres quem tivesse consumo diário inferior a US$ 21,70, cerca de 10 vezes o que a China acredita ser adequado."
O parâmetro de US$ 1,90 ao dia é próximo do utilizado por órgãos brasileiros, como a FGV (Fundação Getulio Vargas) Social, para o cálculo da pobreza extrema no Brasil. O GNI per capita brasileiro em 2019, segundo o Banco Mundial, equivalia a US$ 9,1 mil, abaixo do chinês, mas suficiente para enquadrar o Brasil entre os países de renda média alta (encaixados entre US$ 4 mil e US$ 12,5 mil).
No Brasil, segundo a FGV Social, havia no primeiro trimestre deste ano 35 milhões de pessoas vivendo com menos de R$ 246 ao mês (US$ 1,64 ao dia). A grande diferença em relação à China é que o Brasil tem uma economia estagnada ou que cresce pouco há anos, com aumento recente da pobreza. Já a economia chinesa praticamente triplicou de tamanho - de US$ 4 trilhões para US$ 11,5 trilhões - desde 2006.