SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Enquanto EUA e Europa tentam imunizar suas populações mais rapidamente do que cresce a taxa de mutações do novo coronavírus, Rússia, China e Índia apostam na projeção geopolítica da vacina.

As três potências, que integram o moribundo grupo Brics com Brasil e África do Sul, têm feito movimentos de expansão de sua influência a partir da oferta de imunizantes, em especial a países em desenvolvimento.

Os russos tiveram uma semana de boas notícias, com sua contestada Sputnik V sendo chancelada pela comunidade científica a partir da publicação de seus dados preliminares de fase 3 na prestigiosa revista britânica The Lancet.

Isso abriu as portas para que a chanceler alemã, Angela Merkel, dissesse que se o imunizante fosse aprovado para uso na Europa, ela ajudaria Vladimir Putin a fazê-lo na Alemanha --resolvendo um dos gargalos da Sputnik V.

Além disso, a aprovação para uso emergencial e fabricação no Brasil avançou consideravelmente. Nesta quarta-feira (3), México e Nicarágua elevaram para 18 os países que já deram aval para a vacina, 6 deles na América Latina.

Para Putin, o prestígio é peça central, ainda mais no momento em que a pressão ocidental acerca da prisão do opositor Alexei Navalni cresce exponencialmente.

De quebra, alguns negócios típicos dos russos podem avançar ao mesmo tempo.

Na Argentina, que vacinou 0,88% de sua população desde a virada do ano com a Sputnik V, o embaixador da Rússia ofertou, segundo relatos, a venda de caças Su-30 ou MiG-29 para a Força Aérea local, que voa em estado miserável.

Na mão inversa, compradores recente de caças russos como Egito e Argélia usaram os canais azeitados para receber o fármaco de Moscou.

Na quarta, desembarcaram na África do Sul 1 milhão de doses da vacina indiana Covishield, a versão sob licença do fármaco da AstraZeneca/Universidade de Oxford.

Embora ela seja entregue pelo consórcio da Organização Mundial da Saúde Covax, que ajuda países mais pobres, é uma bandeira fincada pelo maior produtor de vacinas do mundo no continente mais desprezado pelos fabricantes.

Com isso, Nova Déli entra na disputa com o maior ator externo na África, Pequim.

O presidente Xi Jinping já prometeu ajudar 38 países com dificuldades na pandemia, com foco no continente, para o qual destinou US$ 2 bilhões para imunizantes.

A África do Sul, onde uma nova variante mais transmissível do Sars-CoV-2 assusta cientistas, encomendou 12 milhões de doses ao consórcio.

Vai precisar de mais: isso supre menos de 10% de sua população, lembrando sempre que são vacinas que necessitam de duas inoculações.

Segundo a União Africana, os países da região já reservaram 400 milhões de doses na Índia, ante 270 milhões de farmacêuticas ocidentais. O Covax deverá entregar 700 milhões, de diversos produtores.

Também nesta quarta a China aplicou um golpe contra os indianos, rivais econômicos com quem quase foram às vias de fato em uma escaramuça fronteiriça em 2020.

Pequim anunciou a entrega de lotes doados de vacinas chinesas para o Paquistão, seu aliado e maior inimigo da Índia, que já era cliente da estatal Sinopharm.

As atitudes desses colegas de Brics contrastam com a estratégia de países ricos, de assegurar para si o maior número de doses possível.

Há lógica geopolítica também: eles precisam conter a pandemia para reativar fluxos econômicos e manter estabilidade social, tão importantes quanto influência externa.

Segundo o monitor de contratos para entrega de vacinas da agência Bloomberg, que conta 110 acordos oficiais, nada menos do que 40% dos 8,57 bilhões de doses negociadas estão nas mãos de EUA, União Europeia, Reino Unido, Japão e Canadá, que somam 13% da população mundial.

Os canadenses reservaram uma cobertura vacinal três vezes maior do que a necessária.

Os dados são só referências. Há vacinas com problemas crescentes de aceitação, inclusive a campeã de contratos (3 bi de doses), a da AstraZeneca/Universidade de Oxford.

Além isso, não há informações confiáveis acerca de quantas vacinas estarão disponíveis para China e Índia, os dois países mais populosos do mundo, com 1,44 bilhão e 1,38 bilhão, respectivamente.

A Índia quer vacinar 300 milhões até agosto. Até aqui, só inoculou 0,29% da população.

Mas o país, que produz 60% das vacinas do mundo, será uma grande fábrica de imunizantes ocidentais vendidos para terceiros, também.

Já a China, que usa três de suas vacinas no programa emergencial desde julho passado, também está empenhada em parcerias externas.

Um dos casos mais conhecidos é o da Coronavac, feita em parceria com o Butantan e cuja disponibilidade forçou o até então negacionista Jair Bolsonaro a adotá-la.

Esses são efeitos secundários dessa disputa geopolítica: sob risco de ficar sem insumos chineses, Bolsonaro mudou sua postura crítica à ditadura chinesa e até deve aceitar a presença da Huawei como fornecedora de redes 5G.

Mas tanto no caso chinês como no indiano, há considerações de política interna a fazer, como o episódio em que Nova Déli segurou uma carga de 2 milhões de doses para o Brasil da vacina de Oxford no começo de sua campanha.

Outro ponto é de imagem: a China controlou a pandemia de forma eficaz, antes da vacina, enquanto os EUA caíram no caos e lideram o ranking da tragédia. Mas os americanos estão vacinando em alta velocidade relativa: 10% dos moradores já receberam ao menos uma dose, e 2%, duas. A China, até por ser quatro vezes mais populosa, só vacinou 1,7% das pessoas.