São Paulo - O presidente da Rússia, Vladimir Putin, acusou nesta quinta (29) o Ocidente de arriscar uma guerra nuclear que "irá destruir a civilização" ao sugerir o envio de soldados da aliança militar Otan para a Ucrânia.

O líder também disse que o Ocidente quer "repetir o truque que foi bem-sucedido nos anos 1980 com a União Soviética" ao "tentar nos arrastar para uma corrida armamentista". "Temos de distribuir recursos da forma mais racional possível para construir uma economia eficaz de nossas Forças Armadas", afirmou.

As colocações de Putin ocorreram durante seu discurso anual, previsto pela Constituição russa, à Assembleia Federal (Congresso), em um centro de convenções no centro de Moscou. Com a eleição presidencial a menos de um mês de distância, a fala é uma espécie de resumo de seus temas de campanha e um roteiro de sua retórica.

Assim, além de falar grosso sobre adversários, boa parte do discurso foi dedicada para assuntos domésticos: incentivos para aumentar a natalidade, dados econômicos, programas para a redução do alcoolismo, inteligência artificial, melhorias para pequenos empresários.

Putin será reeleito, mas para o Kremlin uma boa votação e comparecimento às urnas é essencial para a legitimação de seu poder.

Mas o tema que permeou a fala foi a Guerra da Ucrânia, iniciada por Putin há dois anos, e o confronto com os Estados Unidos e seus aliados. É algo que ressoa no eleitorado: o temor de uma guerra com o Ocidente é o maior para 55% dos russos, segundo pesquisa divulgada dia 20 pelo Centro Levada, instituto independente.

"Nós lembramos do destino de todos que enviaram contingentes ao nosso país", afirmou, em referência às invasões francesa e alemã no passado. "Agora, as consequências para os potenciais interventores são muito mais trágicas. Eles precisam finalmente entender, e eu acabei de falar a eles, que nós também temos armas que podem destruir alvos nos territórios deles."

Foi um recado particular ao presidente francês, Emmanuel Macron, que levantou a ideia de ajudar a Ucrânia não só com armas, mas com forças. "Eles não entendem que existe o risco de um conflito nuclear?", disse.

A proposta foi rejeitada por colegas europeus, ciosos da disposição russa –o porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, já havia falado na "inevitabilidade" de uma guerra com a Otan se isso ocorresse.

A referência à corrida armamentista que ajudou a implodir a União Soviética remete à obsessão histórica de Putin de recolocar a Rússia como potência global. Com efeito, o país entrou em ritmo de economia de guerra após a invasão do vizinho, e hoje um terço de seu investimento federal livre vai para defesa. O gasto militar foi de 4% do PIB em 2023, e pode chegar a 7% neste ano.

O russo aproveitou o bom momento em campo na guerra, que viu mais uma cidade no leste cair para as suas forças nesta quinta. "Nós estamos com a iniciativa, na ofensiva. Nós não começamos essa guerra, mas faremos tudo para acabar com ela, erradicar o nazismo", disse, repetindo o mantra de sua invasão.

"Ganhamos grande experiência de combate. Sabemos que ainda temos problemas, mas ao mesmo tempo sabemos o que fazer", afirmou, oferecendo um minuto de silêncio para "os heróis caídos" na defesa dos interesses "das populações do Donbass (leste ucraniano) e da Nova Rússia (sul do país)", áreas hoje sob controle parcial do Kremlin.

Ele celebrou também os dez anos do que chamou de Primavera Russa, a anexação da Crimeia e o início da guerra civil no leste ucraniano. Ao se gabar de capacidades nucleares avançadas, disse que o "torpedo do juízo final" Poseidon está quase pronto para uso.

Confirmou que, além do míssil balístico lançado por caças Kinjal, a Rússia usou na Ucrânia outra de suas "armas invencíveis" anunciadas em 2018, o também hipersônico Tsirkon.

Putin começou a falar às 12h15 (6h15 em Brasília). O discurso sempre é muito antecipado: no ano passado, ele acabou com o anúncio da saída russa do último acordo de controle de armas nucleares em vigor. Este foi o 19º discurso feito por Putin, no Kremlin desde o fim de 1999.

O presidente repetiu sua visão de mundo segundo a qual os Brics, bloco do qual o Brasil faz parte, será vital para a reconstrução da ordem internacional. "Em 2028, os Brics, com seus novos membros, serão responsáveis por 72% do PIB mundial", disse.

Defendeu o fim do dólar como padrão de negociações mundiais devido a seu uso político pelos EUA, posição que encontra eco no governo brasileiro. "O Ocidente desacreditou suas moedas com o regime de sanções" adotado contra a Rússia devido à guerra, que por ora falhou em imobilizar o país.

Como seria previsível, nenhuma palavra até aqui acerca de dissenso interno ou a morte do ativista Alexei Navalni na cadeia, ocorrida há duas semanas. O opositor seria enterrado nesta quinta, mas seus aliados disseram não encontrar ninguém para fazer o serviço devido ao discurso de Putin –a cerimônia será nesta sexta (1º).