Proposta de Trump é obra de 'hipocrisia e realismo político'
Análise de jornalista aponta que acordo foi desenhado para não ser aceito pelo lado árabe da disputa Israel-Palestina
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
Análise de jornalista aponta que acordo foi desenhado para não ser aceito pelo lado árabe da disputa Israel-Palestina
Igor Gielow - Folhapress
São Paulo - O "acordo do século" proposto por Donald Trump para solucionar 71 anos de conflitos entre israelenses e palestinos foi desenhado para não ser aceito pelo lado árabe da disputa. É uma peça que une hipocrisia e "realpolitik" em igual medida.
Hipócrita porque oferta uma paz sem que os palestinos tenham sido chamados para conversar. E, a ofertando, o faz em forma de ultimato: para Trump, essa será a última chance que os quase 5 milhões de moradores da Cisjordânia e da Faixa de Gaza terão de normalizar suas condições de vida.
Já a realidade política se impõe na escolha que Trump fez, rompendo a tradição de seus 12 antecessores a serem vistos como principais mediadores das disputas de Israel com seus vizinhos e habitantes – moram hoje no Estado judeu 1,9 milhão de árabes.
Desde a histórica paz de Israel com o Egito selada em Camp David em 1979 até o fracasso fragoroso do estabelecimento da Palestina no mesmo lugar 21 anos depois, os americanos sempre miravam algum tipo de equilíbrio. A abordagem fracassou. A lista de culpados vai sempre depender da inclinação política do observador, mas quase invariavelmente está correta.
Para os críticos de Israel, a cristalização da política linha-dura de Binyamin Netanyahu na sua década seguida no poder provou o instinto segregacionista de Tel Aviv. Onde era necessário uso de força militar na visão de Bibi, seja contra o Hamas na Faixa de Gaza ou nas escaramuças fronteiriças com o Hizbullah libanês, ela ocorria.
O asfixiamento econômico e humanitário da população palestina, simbolizado pelo muro levantado na região, era o preço pela sensação de segurança para os israelenses - com efeito, o terrorismo decresceu dramaticamente no país. Por outro lado, a vitimização palestina sempre passou pela forma hipócrita como sua causa foi manipulada pelos países da região.
O mais recente ator desse jogo, o Irã, criou títeres regionais como o Hamas. A forma com que o grupo comanda Gaza, com terror direcionado a dissidentes internos sob a justificativa do cerco que Israel de fato impõe, não o qualifica exatamente a santo na narrativa.
Na ANP (Autoridade Nacional Palestina), a frágil e corrupta estrutura executiva legada por Iasser Arafat (1929-2004) ao hoje idoso e contestado Mahmoud Abbas mostrou- se incapaz de unificar as inúmeras facções palestinas.
Com essa pulverização e um certo deslocamento do interesse mundial do conflito israelo-palestino para as emergências de segurança oriundas da Al-Qaeda e do Estado Islâmico, ou às guerras no Iraque e na Síria, tentar impor um acordo de paz unilateral tornou-se uma opção quase palatável. Isso é "realpolitik". Não quer dizer que vá solucionar o conflito.
O americano jogou na confusão. Falou em "mais que dobrar" o território palestino, mas o plano prevê a excisão das áreas com assentamentos judeus na Cisjordânia para Israel, garantindo o controle sobre o vale do rio Jordão - curso de água único por lá.
O aumento de área passa, no bizarro mapa proposto por Trump, pela cessão de dois pontos no deserto.
Lembra um pouco a criação da "Israel na Sibéria". Ideia do ditador soviético Josef Stálin, o experimento de 1934 fracassou e hoje tem menos de 2% de aderentes do judaísmo.
Já a conexão da Cisjordânia a Gaza seria feita por um túnel, uma visão algo criativa para contiguidade territorial. O presidente também disse que os palestinos teriam uma embaixada americana em algum ponto de Jerusalém Oriental, mas aparentemente fora da barreira existente.
Ao mesmo tempo tratou Jerusalém como "capital indivisível de Israel". A dissonância deve ter desagradado centro-direita e direita israelenses. Assim como o compromisso com um Estado palestino deve ter descido quadrado para a liderança em Ramallah.
Se por um lado é algo positivo a seus olhos, a minúcia de ter um Estado desprovido de força militar e soberania plena parece suficiente para garantir a rejeição da ideia. Também é ilusório crer no desarmamento do Hamas ou na cessão voluntária do comando da Faixa de Gaza e seus 1,9 milhão de habitantes.
Ao dar quatro anos para as partes se acertarem, resta ao observador sem lado escolher o pessimismo ou o otimismo. Na primeira hipótese, mais realista, é possível que Israel faça avançar as cláusulas que lhe interessam. Foi exatamente isso que Bibi sinalizou ao dizer que vai colocar as anexações para análise já. Na segunda, não impossível se houver pressão por parte de países árabes, o prato feito é aceito como base para alguma negociação.
Por fim, como se antevia, o plano parece tratar mais imediatamente da política interna de dois líderes sob fogo interno - um acusado de corrupção, outro tendo o impedimento em julgamento.