Ribeirão Preto, SP - Enquanto a alta comissária de Direitos Humanos das Nações Unidas, Michelle Bachelet, disse nesta quinta-feira (27) que Israel pode ter cometido crimes de guerra ao bombardear Gaza, a posição oficial do Brasil é contrária à criação de uma investigação internacional sobre possíveis violações durante o último conflito contra o grupo islâmico Hamas.

As declarações foram dadas durante uma sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, convocada em caráter extraordinário horas antes do cessar-fogo que encerrou a fase de hostilidades entre israelenses e palestinos. A reunião discute uma resolução apresentada pelo Paquistão, pela Organização para a Cooperação Islâmica (OCI) e pela delegação palestina no Conselho.

Segundo Bachelet, seu gabinete verificou a morte de 270 palestinos em Gaza, incluindo 68 crianças, e 10 pessoas em Israel, além das centenas de feridos. Em sua avaliação, embora as Forças Armadas israelenses tenham tomado precauções como avisos prévios de ataques aéreos que destruíram prédios inteiros em regiões residenciais, a ofensiva levanta sérias preocupações em relação ao cumprimento dos princípios de distinção e proporcionalidade do direito humanitário internacional.

"Se considerados indiscriminados e desproporcionais em seu impacto sobre civis, tais ataques podem constituir crimes de guerra", disse Bachelet, acrescentando que a apuração inicial não encontrou evidências de que todos os alvos eram edifícios usados por lideranças do Hamas ou para fins militares, como alega Israel.

Quanto aos foguetes lançados contra o território israelense, a alta comissária afirmou que, devido ao fato de que os projéteis não eram capazes de distinguir entre alvos militares e civis, cada um deles —mais de 4.400, segundo autoridades de Israel, dos quais a maioria foi interceptada pelos sistemas de defesa antimísseis— constitui uma clara violação do direito internacional.

Em sua fala, a representante do Brasil no Conselho, a embaixadora Maria Luisa Escorel, disse que o país não vai apoiar a proposta de abertura de investigação internacional. Segundo ela, a medida não é capaz de contribuir para sustentar a paz e o diálogo entre israelenses e palestinos.

Escorel expressou "profunda preocupação" com a escalada de violência e lamentou a perda trágica de vidas civis. Também celebrou o cessar-fogo como "um passo importante e necessário" para evitar novos episódios de violência e pediu que os dois lados se atenham a respeitar o direito internacional.

A fala da embaixadora refletiu ainda a postura pró-Israel do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), ao atribuir pesos diferentes ao papel desempenhado pelas partes envolvidas no conflito de 11 dias. Escorel afirmou que o Brasil condena "nos termos mais fortes os lançamentos de foguetes de Gaza contra a população israelense pelo Hamas e por outros grupos militantes".

Ao mencionar a ação militar de Israel, no entanto, a embaixadora foi mais moderada. Disse que as mortes de civis e os danos causados à infraestrutura do território palestino "são de extrema preocupação" e pediu que as forças israelenses "exercitem cautela máxima enquanto exercem seu direito de autodefesa".

Segundo a embaixadora, o Brasil "apoia firmemente todos os esforços diplomáticos na direção de um acordo de longo prazo que acomode as legítimas preocupações de ambos os lados".

A resolução em discussão pede que o Conselho examine todas as possíveis violações do direito internacional e dos direitos humanos. Para isso, o texto propõe um estudo sobre as "causas profundas das tensões recorrentes", como "a discriminação e a repressão sistemática baseadas na identidade nacional, étnica, racial ou religiosa".

Se aprovada, a investigação tentará reunir elementos que poderiam ser utilizados no âmbito da abertura de processos judiciais e na identificação de possíveis culpados.

Os Estados Unidos, aliados mais próximos de Israel, não se inscreveram para tratar das negociações, das quais participaram, entre outros países, China, Rússia, França, Reino Unido, África do Sul e Turquia.

O embaixador do Paquistão na OCI, Khalil Hashmi, lamentou a ausência dos americanos, a quem se referiu como "os autoproclamados campeões globais dos direitos humanos", e acusou-os de proteger Israel de ser responsabilizado pela comunidade internacional e de fornecer armas e munições para "crimes de guerra amplamente relatados e crimes de apartheid contra o povo palestino".

Já a embaixadora de Israel na ONU, Meirav Eilon Shahar, acusou o Hamas de ter iniciado o conflito e afirmou que seu país fez todo o possível para "reduzir as tensões". Para ela, a sessão extraordinária desta quinta mostrou que o Conselho de Direitos Humanos da ONU é uma instituição "anti-israelense".

Israel é o único país com um ponto fixo na agenda de cada sessão do órgão, e esta foi uma das razões que levaram o governo dos EUA, durante a presidência de Donald Trump (2017-2021), a abandonar o Conselho. Com Joe Biden na Casa Branca, Washington retornou, mas na posição de observador. O atual presidente optou por uma abordagem mais discreta à tensão no Oriente Médio, e seu pedido público pelo fim da violência não teve papel determinante no acordo de cessar-fogo, mediado principalmente pelo Egito.

​​O Hamas começou a disparar foguetes contra Israel no dia 10 em retaliação ao que chamou de abusos dos direitos israelenses contra palestinos em Jerusalém durante o mês do ramadã, sagrado para os muçulmanos. Os ataques ocorreram após uma série de confrontos entre as forças de segurança israelenses e grupos palestinos na mesquita de Al-Aqsa, e de uma decisão judicial em primeira instância que pode expulsar famílias palestinas de um bairro de Jerusalém Oriental alvo de disputas desde que foi anexado por Israel, em 1967. Em resposta, as Forças Armadas israelenses passaram a bombardear Gaza.

A sequência de violência foi a mais grave desde 2014. O último grande confronto durou 51 dias e devastou a Faixa de Gaza, provocando as mortes de pelo menos 2.251 palestinos, a maioria civis, e de 74 israelenses, quase todos soldados.

O conflito atual também serviu de combustível para acirrar as hostilidades internas em cidades israelenses que antes eram vistas como símbolos da convivência entre árabes e judeus. Houve centenas de prisões, e autoridades locais decretaram estados de emergência e toques de recolher. Além disso, houve sinais de revolta contra Israel na população árabe nos vizinhos Líbano e Jordânia, o que aumentou os temores de que o conflito desestabilizasse todo o Oriente Médio —o que não aconteceu.

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