São Paulo - Após forte pressão internacional de organizações científicas e da sociedade civil, a OMS (Organização Mundial da Saúde) recuou da decisão de classificar velhice como doença na nova versão CID 11 (Classificação Internacional de Doenças), que entra em vigor em janeiro de 2022.

Imagem ilustrativa da imagem OMS recua e desiste de classificar velhice como doença
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A mudança foi confirmada nesta terça (14) por um diretor da entidade ao médico e gerontólogo brasileiro Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade e que já dirigiu o programa de envelhecimento da OMS.

A proposta anterior era substituir o termo senilidade (código R-54), que já existe na CID, por "velhice sem menção de psicose; senescência sem menção de psicose; debilidade senil" (MG2A). Mas houve uma forte reação negativa porque o entendimento foi que, ao assinar um atestado ou um diagnóstico, o médico poderia passar a considerar velhice como doença.

A sugestão agora é que o texto do código seja "declínio da capacidade intrínseca associado ao envelhecimento". Porém, ainda podem ser feitas alterações até o fim do ano. A CID é um conjunto de 55 mil códigos usados por profissionais da saúde, pesquisadores e formuladores de políticas públicas. Está na sua 11ª atualização.

À primeira vista, a mudança pode parecer sutil, mas especialistas em envelhecimento dizem que ela já acalma os ânimos da comunidade internacional. Nos últimos meses, ocorreram mobilizações de governos, sociedades médicas e entidades ligadas ao envelhecimento em diversos países, inclusive no Brasil, pedindo que a OMS alterasse o código.

A avaliação era que, ao relacionar velhice à doença, a nova classificação poderia ser usada para negligenciar os diagnósticos de doenças nos mais velhos, impedir o registro correto das causas de mortes e ainda aumentar a discriminação contra a população idosa.

"Essa decisão agora coloca um freio no idadismo que iria atingir níveis sem precedentes. De repente, ficaríamos todos com o rótulo de velhos. Se é velho, deixa morrer. Não vai tratar, não vai fazer diagnóstico", diz Alexandre Kalache.

Para a enfermeira Yeda Duarte, professora da USP (Universidade de São Paulo) e coordenadora do estudo Sabe, que acompanha o envelhecimento na capital paulista, o recuo da OMS foi muito importante, mas a comunidade científica aguarda ansiosa a publicação final do texto.

"Por enquanto, houve uma promessa de mudança. Ainda não é a melhor classificação, mas a CID é sempre uma coisa que você pode fazer sugestões, apresentar evidências e ele vai sendo ajustado no meio do caminho."

No Brasil, 3 em cada 4 mortes ocorrem a partir dos 60 anos. São desfechos de doenças cardiovasculares, oncológicas neurológicas. Para o médico Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, seguindo o entendimento do código proposto anteriormente, todos os óbitos futuros dessa faixa etária poderiam ter a causa catalogada como velhice.

Em abril deste ano, a morte aos 99 anos do príncipe Philip, marido da rainha Elizabeth 2ª, do Reino Unido, acendeu o alerta internacional para a questão. A causa da morte foi "idade avançada", segundo o atestado assinado pela equipe médica que cuida da família real britânica. Mas semanas antes da morte, o príncipe havia sido submetido a uma cirurgia cardíaca.

Em audiência na Câmara dos Deputados sobre o assunto, Maria Cristina Hoffmann, representante da Coordenação de Saúde do Idoso do Ministério da Saúde, disse que a alteração poderia levar a registros nos atestados de óbitos sem a garantia de investigar a causa real da morte, o que prejudica a elaboração de políticas públicas.

"Declaração de óbitos é uma fonte importante de conhecimento de saúde. Seria um risco se começassem a colocar lá que a pessoa morreu de velhice. A gente perderia o controle de quantos tinham Parkinson de quantos morreram Alzheimer, informações muito importantes para o planejamento de políticas públicas", diz o geriatra Marco Túlio Cintra, vice-presidente da SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia).

Na audiência pública da Câmara, Juan Escalante, representante da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), braço da OMS para as Américas, justificou que a intenção da CID não foi classificar a velhice como doença, mas sim permitir que a inclusão da palavra agrupasse fatores que influenciam na saúde.

Na opinião de Marco Cintra, da SBGG, a polêmica também pode ter sido provocada fatores culturais. "Para nós, de língua portuguesa e espanhola, o termo velhice ficou pejorativo. A gente tem lutado muito para combater estigmas e preconceitos contra o envelhecimento. Envelhecer não é uma doença, não é peso para sociedade. Depende do envelhecimento de cada pessoa."

Outra questão muito discutida nos últimos meses foi que, uma vez associada a doença, a velhice virasse um alvo ainda maior da indústria 'anti-ageing' e de tratamentos sem evidências com promessas de retardá-la. "Não falta quem queira entrar nesse mercado. A indústria anti-ageing comanda US$ 37 bilhões nos EUA por ano. Há um lobby poderoso", afirma Kalache.

Para ele, o novo termo que deve ser adotado pela OMS (declínio da capacidade intrínseca) também não é o ideal porque remete à capacidade biológica de cada um e tira a importância dos determinantes sociais da saúde. "Os fatores hereditários, intrínsecos, biológicos respondem por apenas 25% das chances de se chegar bem à longevidade; 75% dependem da forma como você vive, o acesso que tem a uma alimentação saudável, à saúde, à educação, à prática de atividades físicas."

Na opinião dele, é possível que a discussão sobre o novo código se arraste no próximo ano. "Minha aposta é no desenvolvimento de um código relacionado à fragilidade. Fragilidade é algo que podemos definir, mensurar, fazer intervenções, qualquer pode se tornar uma pessoa fragilizada em qualquer etapa da vida."

Para Ieda Duarte, a classificação anterior seria um enorme contrassenso para a luta por um envelhecimento ativo e saudável e também em relação a uma publicação da própria OMS, no início de 2021, de relatório denunciando o idadismo contra idosos.

A classificação do envelhecimento biológico como doença foi feita em artigos publicados em periódicos internacionais a partir de 2015, por grupos de pesquisadores da Bélgica, da Suécia, do Reino Unido, entre outros. Em maio de 2019, a incorporação da classificação da CID-11 foi aprovada na 72ª Assembleia Mundial de Saúde, mas passou praticamente despercebida até que a morte do príncipe Philip reacendeu o debate.