BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - Após mais de 20 horas de debates, a Câmara dos Deputados da Argentina aprovou nesta sexta-feira (11) o projeto de lei para garantir o direito ao aborto apenas pela vontade da mulher até a 14ª semana de gestação. Foram 131 votos a favor, 117 contra e 6 abstenções. A proposta agora vai ao Senado que, há dois anos, rejeitou texto semelhante. A sessão está prevista para 29 de dezembro, segundo a senadora Norma Durango. Caso seja aprovado, o projeto passa a ser lei.

Já havia amanhecido quando o resultado saiu, e milhares de pessoas que passaram a noite do lado de fora do Congresso e em praças das principais cidades do país manifestaram suas reações.

As que estavam do lado "verde", favorável à legislação, pulavam e se abraçavam na capital, Buenos Aires. Muitas delas choravam de alegria nos últimos discursos, porque a diferença do resultado a favor da aprovação já era notada nas falas dos parlamentares.

"Este é um passo fundamental e o reconhecimento de uma longa luta que os movimentos de mulheres vêm travando em nosso país há anos", disse Elizabeth Gómez Alcorta, ministra da Mulher, Gênero e Diversidade. "Continuaremos trabalhando para que a interrupção voluntária da gravidez seja lei."

As do lado "celeste", contrárias à proposta, expressaram decepção, algumas se retirando rapidamente dos locais onde estavam concentradas, e um grupo menor chamando os deputados de "assassinos".

"Eles não querem mostrar o que é um aborto", disse Mariana Ledger, que segurava uma cruz e um boneco que simulava um feto sem cabeça e ensanguentado. "É isso, e eles não querem mostrar. Eles estão escondendo a verdade, não somos pessoas tolas."

O presidente da Câmara, Sergio Massa, muitas vezes se mostrou nervoso com o fato de que grande parte dos deputados gastou muito mais do que os 5 minutos de que cada um dispunha para defender o voto. Com 170 parlamentares inscritos para falar, a sessão que começou às 11h de quinta (10) só terminou às 7h30 desta sexta. Havia preocupação com as aglomerações na praça do Congresso.

Ainda que tivessem sido tomadas precauções para evitar a contaminação por coronavírus, com o passar das horas já não se respeitavam mais as medidas. Grupos se abraçavam, cantando e gritando juntos, e muitos não usavam máscaras --ou as tinham no queixo ou soltas no pescoço. Foi uma das noites mais quentes do ano, em que a temperatura por volta de meia-noite era de 26°C.

Durante a tarde de quinta, o ministro da Saúde, Ginés González García, esteve no Congresso para apoiar a proposta. Em entrevista à TV local, ressaltou que "o aborto é legalizado em países do primeiro mundo e em outros desenvolvidos com forte religiosidade, como Itália, Espanha e Irlanda". "Agora estamos avançando na Argentina. Se fosse um problema masculino, já teria sido resolvido há muito tempo."

O projeto foi uma das bandeiras da campanha do presidente Alberto Fernández e não havia sido enviado antes aos deputados devido à pandemia de Covid-19. "Sou católico, mas tenho que legislar para todos. [O aborto] é um problema de saúde pública muito sério", disse o presidente.

Embora os partidos aliados a Fernández tenham 41 das 72 cadeiras do Senado argentino, ainda não está claro se o projeto será sancionado na Casa. Em 2018, nem todos os senadores votaram de acordo com as orientações partidárias.

A lei atual, em vigor desde 1921, autoriza a realização do aborto apenas em caso de estupro e de risco de morte da mãe. Caso aprovada no Senado, a nova regra permitirá a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação.

Esse limite, porém, pode ser ampliado no caso de riscos à mulher. O projeto prevê que a maioria dos casos seja atendida de forma ambulatorial, com a entrega de comprimidos abortivos. Apenas os casos mais complicados demandariam intervenção cirúrgica.

Há um artigo que prevê a objeção de consciência pessoal --quando o médico, por questões pessoais ou religiosas, não quer realizar o procedimento. Neste caso, porém, ele ou o hospital em que ele trabalha serão obrigados a buscar outro profissional ou hospital que aceite o caso.

A versão anterior do texto considerava que essa era uma obrigação apenas do médico.

O projeto também define que, a partir dos 16 anos, a mulher pode pedir o aborto sozinha, sem a autorização dos pais. Dos 13 aos 16, a permissão será necessária. As menores de 13 anos precisarão estar acompanhadas de um de seus representantes legais durante o processo.

A iniciativa inclui ainda um projeto de lei paralelo, com votação separada, para ajudar as mulheres que desejam continuar com a gravidez e enfrentam graves dificuldades econômicas ou sociais.

"O aborto como prática médica existe. Mesmo quando ilegal, nunca parou de ser realizado", disse a pediatra Carlina Ciaka, mãe de dois filhos, à agência Reuters. A médica ficou na praça do Congresso até depois de meia-noite.

Para ela, o projeto ajuda mulheres de grupos mais vulneráveis, muitas vezes forçadas a buscar abortos clandestinos em circunstâncias perigosas. "Por elas, e por nossas filhas, vamos lutar até que se transforme em lei", disse.

Após a aprovação do projeto, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ) publicou no Twitter um vídeo da celebração em Buenos Aires e escreveu: "A comemoração pela perspectiva de poder assassinar bebês demonstra o grau de degradação vivido no país".

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) também publicou o vídeo, mas escreveu apenas "Câmara da Argentina aprova o aborto. Projeto agora segue para o Senado".